Goshka cruzou a planície arrasada pelo tempo e pela solidão. Fincou a espada na areia, abriu sua caixa torácica e tocou o coração com a ponta dos dedos. Ritmo cardíaco em cinquenta e cinco por cento. Não sobreviveria ao inverno de Allakula.
As dunas negras engoliam o horizonte. Ao redor, os esparsos arbustos de creosoto impregnavam com enxofre o ar rarefeito daquele planeta abandonado.
O silêncio era sua única companhia.
Apoiou as costas na espada, cobriu-se com a capa surrada que levava no pescoço e considerou suas alternativas. A cidade mais próxima estava a pelo menos dois dias de viagem, mas, ainda que a alcançasse com vida, não havia garantias de encontrar um mísero frasco de vitae em lugar algum.
Com um toque do indicador na têmpora esquerda, Goshka ligou o radiotransmissor subcutâneo.
Bzz …empestade nível cinco na escala … bzz … rota transgaláctica interditada … bzz …audações, caros caçadores. Teremos uma noite de trabalho especialmente iluminada hoje. Se prestarem bastante atenção, verão que as luas estão alinhadas.
O locutor tinha razão. Goshka contemplou o céu azul alaranjado, onde as três luas se enfileiravam, equidistantes como se houvessem sido posicionadas com cautela.
Ritmo cardíaco em cinquenta e três por cento.
… mensagem de nossos queridos líderes planetários …
Uma música irritante ocupou a transmissão. Goshka diminuiu o volume, desamarrou a bolsa de viagem pendurada na empunhadura da espada e despejou seu conteúdo na areia; um frasco de vidro, um punhado de moedas locais e um vídeo-orbe.
Devolveu as moedas à bolsa e destampou o frasco com os dentes. O conteúdo pairava no recipiente como uma densa névoa, suas cores se transmutando do verde ao púrpura e ao vermelho-sangue. Aquela era sua última dose de vitae, roubada de um maldito espaçomago. Numa golada, bebeu a poção milagrosa e atirou o frasco para longe.
Limpou o suor que escorreu pela metade orgânica de seu rosto, suas mãos trêmulas como folhas ao vento. Engoliu em seco. Suas pupilas dilataram e uma luz intensa encobriu o negrume do deserto. Goshka se deitou e aguardou a dormência em seu corpo cessar.
Ritmo cardíaco em setenta e sete por cento.
Horas — ou segundos — se passaram, até retomar o controle parcial de si mesma. Ainda deitada, apanhou o vídeo-orbe na areia e, com um leve toque do polegar, ligou o aparelho. Duas figuras translúcidas surgiram diante de seus olhos.
Uma batalha eclodiu em sua cabeça e um sorriso desabrochou em seus lábios. Sua ciberconsciência, acoplada na têmpora esquerda, tentou evitar aquela demonstração de afeto, mas seu cérebro orgânico — ou o que restava dele — prevaleceu.
— Você precisa mesmo partir, filha? — A voz de seu pai, mesmo naquela forma diminuta do holograma, lhe trazia um sorriso à metade orgânica do rosto.
— Há um mundo lá fora a ser vivido, pai — respondeu a pequena Goshka no vídeo. — Sentirei saudades.
— Sentirei saudades — repetiu a verdadeira, assistindo aos hologramas se dissiparem no ar.
Aquele era o último resquício de sua vida humana.
Ritmo cardíaco em setenta e nove por cento.
…quadrante Norte, temos relatos de dois possíveis alvos.
A voz do locutor a trouxe de volta à realidade. Desligou o vídeo-orbe e aumentou o volume do radiotransmissor.
…fugitivo adulto. Recompensa de três milhões de créditos, se entregue vivo. Pagos em moeda local.
Goshka suspirou. Havia caçadores à espreita aquela noite.
…semi-orgânica avistada no setor cinquenta e quatro. Pela descrição fornecida, suspeitamos ser uma terráquea.
— QUÊ? — Sua voz saiu mais alta do que gostaria. Estava sendo caçada?
…milhão de créditos, se entregue viva. Pagos em moeda local. Boa caçada a todos.
Enfiou os pertences de volta na bolsa. Setenta e oito por cento. Seu ritmo cardíaco voltou a despencar. O susto deveria ajudar a mantê-la sob controle, mas sua maldita ciberconsciência não conseguia lidar com os órgãos que lhe restavam.
Um som abafado ecoou à distância. Uma pegada.
Goshka cerrou os punhos e praguejou. Se tivesse pulmões, teria prendido a respiração. Havia alguém por perto. Arrependeu-se de não ter comprado um implante de visão infra-vermelha quando teve a chance. Cobriu-se com a capa e torceu para que o som fosse apenas um delírio.
Outra pegada; ainda mais perto.
Precisava pensar rápido. A ondulação das dunas e sua capa não a ocultariam por muito tempo.
Decidiu.
Esticou o braço esquerdo em direção à espada, que permanecia solitária do lado de fora de seu abrigo improvisado, e aguardou. Manteve o membro estendido enquanto checava o coração com a mão direita. Setenta e seis por cento. A ciberconsciência interpretava os sintomas de medo — tremedeira, tontura — como uma ineficácia em seu sistema e os bloqueava por completo; era seu coração quem pagava o preço.
Mais uma pegada. Era sua deixa.
Rolou pela areia e a espada voou em sua direção. A empunhadura conectou-se aos ímãs em sua mão e um calafrio prazeroso percorreu o braço e espinha dorsal. Estava conectada.
Olhou em volta. Ninguém.
…um caçador vivo vale mais que dois mortos…
Outra pegada. O infra-vermelho realment…
Grãos de areia tocaram sua espada e Goshka os sentiu como se roçassem sua própria pele. Algo, ou alguém, se esgueirava em sua direção. Num só movimento, girou a espada e lançou a capa para trás. A lâmina apenas cortou o ar. Uma silhueta, porém, se formou sob a capa esvoaçante. Havia capturado seu agressor.
Goshka saltou em direção ao pequeno ser que se debatia sob seu versátil e ultrapassado pedaço de pano. Apontou a espada e levantou a capa.
Sua garganta travou. O caçador não passava de uma criança. Meio metro de altura, tromba mal-desenvolvida, nenhuma ruga visível. A minúscula criatura tremia, agarrada a seu rifle atordoante, encolhida feito um tubérculo venusiano.
— Não m-me mate. — Foi tudo que conseguiu dizer em sua língua natal.
O cérebro de Goshka bombardeou a ciberconsciência com sinais interpretados como culpa. Ela já levantava sua espada para retalhar a pobre criatura quando o cérebro venceu a disputa.
— Vá embora, moleque — disse, no idioma allak. — Antes que meu sistema operacional me faça mudar de ideia.
A pequena criatura se manteve imóvel, seus olhos gosmentos dilatados pelo pânico.
…ou seja, SEMPRE andem em trios, caçadores…
— MERDA!
O disparo do rifle ecoou em seus ouvidos sintéticos. A ciberconsciência calculou a reação perfeita numa fração de segundo; esquerda.
Goshka enfiou a espada na areia em seu flanco esquerdo e a usou de escudo, bem a tempo de bloquear o raio atordoante. O impacto a fez patinar no solo arenoso.
Mas de nada adiantou.
Pela direita, um raio a acertou de raspão. Seu sistema elétrico entrou em curto-circuito e Goshka desabou. Engoliu um punhado de areia e tossiu, espalhando poeira no ar. Sua garganta seca implorou por água. Sem implantes funcionais, sua visão retornou a níveis humanos e tudo se tornou escuridão.
Sombras dançavam ao redor enquanto suas pupilas se acostumavam à luz natural. Com dificuldade, avistou dois allaks — nativos daquele planeta. Rifles a postos, discutiam incongruências enquanto aguardavam Goshka desmaiar. Aos poucos, seu corpo entrou em modo de conserva de energia.
…caso de emergência, utilizar o comunicador de dobra da base mais próxima…
Antes de apagar, Goshka teve uma ideia que poderia salvar sua vida. Precisava apenas que seu coração aguentasse mais algumas horas.
Setenta e dois por cento.
Ciberconsciência: funcional.
Microcontroladores nervosos: avariados.
Transporte de fluidos corporais: funcional.
Sistema orgânico de manutenção de energia: níveis críticos de funcionamento.
Goshka abriu os olhos.
Um odor de óleo e ferrugem impregnava o ar. Sua visão turvou, transformando o cômodo num borrão. Ao redor, distinguiu apenas sua espada atirada num canto entre dutos arcaicos de ventilação. Amarras metálicas envolviam seus pulsos. Fios de cobre, conectados aos ímãs em sua espinha dorsal, prendiam-na a uma cadeira magnética. Escapar daquele lugar seria complicado, mas não impossível.
Sessenta e quatro por cento.
Atenção, caçadores. A terráquea foi capturada. Um salve …
A voz do locutor se fez onipresente como o vento no deserto.
— Já chega! — disse outra voz, de fora da sala. — Ela é minha para interrogar. Vocês receberão sua parte da recompensa em breve.
Um resmungo prolongado, seguido do som procedural de engrenagens, reverberou pela sala.
O portão se abriu, revelando um allak corpulento. Era um dos malditos caçadores que a nocautearam. A criatura esverdeada caminhou em sua direção, seus bracinhos unidos às costas, e avaliou o recinto como quem visita um museu.
— Fala nossa língua, selvagem?
— Fluentemente — respondeu Goshka, ainda atordoada. Não havia tempo a perder. — O que quer de mim?
— Eu faço as perguntas por aqui. — O caçador se aproximou e a cheirou. A extremidade de sua tromba se dilatou e contraiu a centímetros de seu rosto. — O que te traz a Allakula, tão longe de casa?
— Minha nave foi saqueada. — Levantou uma sobrancelha desafiadora. — Acha que eu viria a este planeta inútil por vontade própria?
O allak deu uma volta por trás de Goshka e o ar quente e úmido da respiração do caçador encostou em sua nuca.
Sessenta e um por cento.
— Os contrabandistas pagarão uma boa quantia por você. Servirá de tradutora ou concubina, como lhes for mais conveniente.
…três bravos caçadores a levaram para…
— Tenho uma doença. — Goshka indicou sua caixa torácica com o queixo. — Meu sistema orgânico pode falhar a qualquer instante.
O caçador fitou-a com curiosidade, sua mão acariciando a tromba esguia. Goshka aproveitou aquela distração e abriu a palma da mão esquerda.
— Se você fala a verdade, não lucrarei contrabandeando alguém nas suas condições. — A testa enrugada do allak refletiu a luz artificial da sala. — Venderei você aos espaçomagos, então. Eles certamente possuem meios de mantê-la saudável com suas poções misteriosas.
Por uma fração de segundo, o coração de Goshka parou. A simples menção aos homens que a transformaram numa aberração fez sua ciberconsciência entrar em pane. Mas aquele não era momento para pânico.
— Acho que não, caçador.
— Como se atreve a me…
Goshka atraiu a espada, que voou diretamente ao seu encontro, e a segurou com a mão esquerda. Estava conectada. Descarregou toda sua energia na espada e faíscas cintilaram pela extensão de seu corpo enquanto o sangue artificial se acelerava em suas veias.
Setenta por cento.
Com a descarga elétrica, as amarras em seus pulsos abriram e Goshka se libertou da cadeira magnética. Os ímãs em sua espinha dorsal estalaram com a brusca desconexão e seus nervos ópticos arderam feito brasa.
— Trombas flamejantes! Co…
Goshka enfiou o cotovelo bem onde deveria ser o queixo do allak, que mais parecia uma enorme gelatina. A criatura desabou e a fitou do chão, incrédula.
— Cadê seu comunicador de dobra? — Goshka encostou a lâmina no rosto do allak.
— Meu… c-comunicador?
— Não é hora para sua audição falhar, caçador. Desembucha.
— Na a-ala oeste. Pode levar todos os meus c-créditos.
— Não preciso do seu dinheiro. — Goshka desencostou a espada. — Se me permite, preciso…
Eliminar a ameaça, sua ciberconsciência transmitiu.
— Não, não, não.
Seu braço se moveu involuntariamente e a espada decapitou o allak, como se cortasse um tubérculo.
— NÃO, DROGA!
Goshka cerrou a mandíbula e esmurrou o próprio peito repetidas vezes. Queria se obrigar a sentir angústia e nojo pelo que havia acabado de fazer. Seu ritmo cardíaco, entretanto, despencou.
Cinquenta e três por cento.
Limpou o sangue amarelado que escorria pela lâmina e prendeu a espada nos conectores em sua espinha.
Tomou emprestado o rifle que o allak levava na cintura e observou o estrago que causara. Fios desencapados desprendiam-se da cadeira magnética. Uma poça de sangue tocava seus pés. Os olhos do allak a fitavam de cabeça pra baixo, como se tentassem entender o que havia acontecido.
Goshka abriu o portão e saiu.
Rifle em mãos, marchou em direção à ala oeste com tranquilidade. Cinquenta por cento. Luzes intermitentes produziam e extinguiam sombras nas paredes. Partículas negras formavam uma fina camada de poeira no chão. Através das escotilhas, Goshka admirou o deserto infinito.
— Ela fugiu — uma voz ecoou pela base. — Temos que avisar os outros!
Goshka deu meia-volta, a arma em riste. Dois caçadores viraram a esquina, apressados, e hesitaram ao vê-la esperando por eles. Goshka reconheceu o menor como a criança que rendera mais cedo.
— Desculpe-me. — A voz de Goshka, vazia como o deserto, foi entrecortada pelo disparo de seu rifle.
O allak adulto caiu desacordado. A criança fechou os olhos, esperando o mesmo destino de seu companheiro.
Goshka seguiu seu rumo.
…setor cinquenta e quatro, dirijam-se à base. Perdemos contato com os caçadores locais. Repito…
As paredes vibraram com aquela voz estrondosa. Goshka continuou a caminhar, seus órgãos sintéticos operando a menos da metade da capacidade. Quarenta e três por cento.
Seus implantes começavam a falhar, transformando o trajeto num devaneio. Mal conseguia enxergar o caminho ou sentir a parede fria com os dedos. Apenas o som do radiotransmissor lhe era nítido; havia se tornado seu silêncio particular.
Trinta e dois por cento.
Chegou à sala do comunicador de dobra, sentou-se diante do telão e iniciou os preparativos. Desconectou a espada de sua espinha e a escondeu fora do alcance da câmera. Limpou o sangue do rosto com as costas da mão. Vinte e seis por cento. Ajustou a postura na cadeira, soltou os longos cabelos e, com eles, cobriu a metade robótica de seu rosto.
Abriu um sorriso forçado e discou. Catorze por cento.
Segundos se estendiam como longos minutos enquanto aguardava a ligação completar. Tudo o que lhe restava era cerrar os olhos.
Cinco por cento.
Seu coração pulsava com dificuldade, suas pálpebras ameaçavam se fechar.
— Alô?
Uma pessoa surgiu no telão. Olhos castanhos, expressão consternada. Era seu…
— Pai?
— Goshka, é você? — Mesmo a anos-luz de distância, seu rosto irradiava felicidade e preocupação. — Minha nossa, filha, você está pálida.
Vinte por cento.
— Não é nada, pai, apenas… não tenho dormido bem.
— Amor, quem é? — perguntou alguém de fora do alcance do vídeo.
— É a Goshka, querido, vem cá!
Seu outro pai surgiu na tela. Trinta e cinco por cento. Goshka amava o contraste que os dois formavam lado-a-lado. Alto e baixo. Delicado e severo.
— Por onde tem andado?
— Não seja grosso, querido. Ela com certeza esteve ocupada.
— Também senti saudades. — Os lábios de Goshka formaram um sorriso. Quarenta e nove por cento. Um sorriso sincero.
Sessenta por cento.
— Nós te amamos, filha. — Setenta e um por cento. — Não passamos um dia sequer sem pensar em você.
— Quando vem nos visitar?
— Em breve, pai.
— Obrigado por ligar, filha. De verdade. — Oitenta e sete por cento. — O que tem feito?
"Pra começar, me alistei aos espaçomagos, fui exilada, perdi metade do cérebro e a maioria dos órgãos internos. Mal consigo controlar meu novo corpo sem ferir alguém. Há dois anos não tenho amigos. Não fico no mesmo lugar por mais de três dias. Viajo de planeta em planeta em busca de uma cura. Não consigo nem mesmo acabar com minha própria vida, minha ciberconsciência não permite. Estou sozinha. Muito sozinha."
Pela primeira vez, Goshka agradeceu por sua ciberconsciência bloquear um pensamento.
— Nada de mais, pai. Estou ótima — disse.
— Que ótimo, filha. Não se esqueça de nós.
— Nunca. — Noventa e cinco por cento. — Amo vocês.
— Também te amamos.
Ritmo cardíaco em cento e três por cento.
Pegadas apressadas surgiram ao fundo. Dezenas delas.
— Preciso desligar, a ligação me custa uma fortuna — mentiu.
Seus pais se despediram e suas imagens sumiram como areia no vento.
…Repito. Fugitiva armada em fuga no setor cinquenta e quatro …
Goshka ergueu seu corpo arrasado pelo tempo e pela solidão. Uma lágrima escorreu pelo único olho orgânico. Levantou sua espada e manteve a posição de ataque enquanto sombras de seres retorcidos e armados surgiam sob a porta.
Seu cérebro orgânico e sua ciberconsciência entraram em acordo: lutariam para viver mais um inverno.