No Labirinto

As the pain sweeps through makes no sense for you
Every thrill is gone wasn’t too much fun at all
But I’ll be there for you-ou-ou
As the world falls down.

David Bowie

 

Nos últimos tempos sua vida vinha sendo ditada pelos sextetos do relógio. Às seis da manhã, acordar; ao meio-dia, um almoço ou quando estava com pressa demais, um lanche rápido; às dezoito, saída do trabalho correndo para tentar evitar o trânsito impossível de ser evitado; e, à meia-noite…

Estava perto agora. A hora ambígua se aproximava de maneira que seu corpo podia reagir a ela. Magnética e assustadora, sempre sussurrava para si mesma que desta vez seria a última, que amanhã dormiria cedo e esqueceria toda aquela bobagem. Mas quando sua vida começa a ser regida pelos sextetos do relógio, é difícil não esperar pelo último e mais bonito deles.

E naquela noite não havia Lua.

Assim que se deu conta disso, viu os ponteiros se encontrando sensualmente sobre o par de números que governava o mostrador. 1. 2. Somados, 3. E escuridão.

O abajur se apagou, assim como o visor do celular e até mesmo as luzes do poste da rua pareceram oscilar. Estava na hora. Ela fechou os olhos e quando os abriu, já não estava mais em seu quarto.

— Ah, Sarah, você me assustou! — A mulher sorriu. Tinha realmente pulado muito alto, fazendo suas sedas, ora esverdeadas, ora arroxeadas, rodopiarem no ar. Sarah sorriu, ao perceber que ela ainda segurava as mãos da pequena criada de quarto.

— Boa noite, vossa Alteza.

— Boa noite — ela deu dois passos na direção da recém-chegada, agora já bem mais à vontade. — Estava esperando por você! Veja — ela apontou para a cama, onde repousava um belo vestido azul. — Foi Rod mesmo quem escolheu. Ele disse que a queria linda essa noite.

— É lindo — ela passou a mão pelo tecido macio, possivelmente o tipo de coisa que em seu mundo custaria os olhos da cara, mas ali… ali tinha o que queria. Sempre. E de certo modo, sabia que Rodriel pediria tudo de volta e em dobro algum dia. — Muito obrigada, Varsa.

A garota sorriu, os olhos lilases reluzindo:

— Eu definitivamente não fiz nada, minha querida, foi meu ilustre irmão.

— Você já…

— Não. E não falemos disso, está bem? — Ela fez um sinal para a criada. — Ajude-a a se vestir — e em seguida dirigiu-se a Sarah. — Vou levá-la ao salão quando estiver pronta.


Ali havia lua.

Ela iluminava todo o salão e seu reflexo realçava o chão de prata polida. Estava apinhado. Como aquele do Labirinto, onde Bowie aguardava a garota de seus sonhos e de suas torturas. Um rei aguardando sua princesa. Como Rodriel sobre o estrado.

Sua Majestade era o único que não usava máscaras naquele momento, o que o fazia ser muito mais receptivo do que os outros convidados. Sarah não gostava de bailes de máscaras, ficava sempre imaginando se por baixo delas não haveria rostos monstruosos de insetos, como os do Overlook. Mas não se preocupou com isso, já que assim que a viu, Rod se levantou e veio em sua direção, abrindo caminho entre seus vassalos.

Estava radiante como sempre. Os olhos cor de chumbo brilhavam. Suas vestes eram vermelhas com detalhes azuis nas mangas e na gola. Seu cabelo escuro e comprido, uma massa única cortada dos dois lados pelas pontas das orelhas, emoldurava o belo rosto. Ele não perdia para o Bowie em nada…

— Minha princesa — ele se curvou e encostou seus lábios pálidos na mão direita da jovem, ela viu vários olhos mascarados se voltarem para ela. — Estava esperando por você.

— Majestade — ela lhe fez uma reverência e ele sorriu, seus dentes brilhando, os caninos ligeiramente pronunciados como os de um gatinho. Ele era estranho e bonito ao mesmo tempo, algo que se esperava do rei daquele lugar mágico.

— Vamos, vamos! — Ele a puxou consigo para o estrado. — É hora do banquete!

Os convivas se agitaram e várias mesas surgiram no salão, já cobertas com pratos, talheres e taças. Os criados vestidos discretamente se aproximaram, silenciosos e eficientes. Varsa se sentou do lado direito do irmão, enquanto Sarah ocupava o esquerdo. Ele a beijou no rosto e sussurrou:

— Temos tudo o que desejar. Vamos, tenho certeza que vai gostar da sobremesa.

Sarah sorriu e delicadamente recusou a entrada. Sabia que não podia comer. Já sabia instintivamente desde a primeira vez que estivera ali. E Alana, uma das amantes anteriores de Rod, havia confirmado. Se experimentasse o que quer que fosse estaria presa, não voltaria mais para casa e seus sextetos sem magia desapareceriam. Desapareceriam também seus pais, seu irmão e seu noivo.

O banquete começou. Os pratos mais fantásticos eram servidos um após o outro. Havia risos e galanterias. Rod a tocava todo o tempo e ela retribuía os olhares e, por que não dizer, algumas das carícias. Gostava dele, já estivera com ele algumas vezes, mas não era realmente sua amante, não estava presa a ele como várias das outras moças no estrado, aquelas que comiam e riam para outros cavalheiros presentes, mas que não tiravam os olhos de seu rei e da ainda-humana ao seu lado. Elas haviam abraçado o sexteto final, Sarah gostava de pensar que ele era uma simples pausa.

Varsa lhe contou uma história engraçada sobre um de seus pretendentes e Sarah riu. O desdém da princesa pelos rapazes que seu irmão lhe dava era pungente, mas Rodriel preferia ignorar. Os boatos na corte da preferência da princesa pelas criadas e pelas antigas amantes do rei eram sussurrados apenas. Todos sabiam que Rod podia ser incrivelmente inflexível, principalmente quando se tratava da irmã mais jovem.

— Aqui, veja! — Ele pegou a mão de Sarah. — Não é uma beleza?

Era, era sim. Um gigantesco bolo de frutas laranjas, todo branco e recheado de sorvete foi trazido. Por um minuto, Sarah hesitou. Resistir a doces: teria de se esforçar agora.

A sobremesa era sempre a pior parte.

— Princesa…

— Não, obrigada — ela sorriu para o criado que olhou para o rei parecendo preocupado. Rodriel franziu o nariz por um instante e também recusou a sua fatia.

— Sarah, vamos conversar — ele a ajudou a ficar em pé e ordenou que os outros continuassem a comer. Varsa os olhou e por um momento pareceu tensa, mas nada disse. Os dois seguiram para a sacada, do outro lado do salão.

Ali, a lua era um esplendor. Uma mistura de cores e reflexos que em outras circunstâncias poderia cegar.

— Sarah, você sabe o quanto eu a amo…

— Sim, Majestade — ela se encostou contra a amurada e por um momento quis que seu vestido fosse amarelo. — Eu sei.

— Eu gostaria, eu desejo de todo o meu coração, que fique aqui comigo. — Ele não esperou que ela respondesse — será feliz aqui, sabe disso. Será imortal, jovem, livre…

— Livre? — Ela sorriu.

— Livre. Terá nobres damas como amigas, jovens cavalheiros como amantes se desejar. Terá a mim…

— Até quando o senhor me quiser…

O rosto dele se contraiu por um momento:

— Conversa demais com Alana…

— Ela está infeliz, Majestade.

— Infeliz? Como ela pode estar infeliz?

— Ela está aqui há seiscentos anos…

— Ela pode ir embora se quiser, basta que coma alguma coisa de fora daqui…

— Para quê, Majestade? Seiscentos anos! Ela viraria pó assim que saísse dessas paredes.

Ele tomou-lhe as mãos e as acariciou, depois se aproximou de seus lábios:

— A imortalidade tem seu preço — Sarah sentiu a maciez da boca do príncipe na sua, suas mãos em sua cintura. Ela recuou e o encarou:

— Eu tenho minha família fora daqui, Majestade. Meus amigos. Meu noivo.

Ele retesou. Sempre parecia ter comido um limão azedo quando André era mencionado.

— Ele não pode lhe dar mais prazer do que eu, minha menina. E mesmo se desse, duraria o quê? Dez anos? Doze? Depois ele arrumaria uma amante mais jovem e a deixaria. Ou se tornaria amargo e distante, vocês se separariam e só haveria dor. E os filhos… — ele fez uma careta. — Você seria infeliz.

— Rod, eu amo você. Mas amo André mais do que qualquer outra coisa no mundo. Vou me casar com ele e seremos felizes…

— Por uma dúzia de ciclos e nada mais. — Ele passou o braço em volta de sua cintura. — Há seis meses você vem aqui todas as noites. É sempre minha bela convidada de honra. Já partilhou minha cama, já dançamos juntos, já caçamos, nadamos, passeamos juntos. Você aqui só terá prazer e lá fora, lá fora só terá dor, minha querida.

— Desculpe, Majestade. Realmente não posso aceitar.

— Alana a envenenou contra mim.

— De maneira nenhuma! Alana o ama! E eu também! Mas tenho deveres. Tenho outros que amo…

— Mais do que a si mesma?

Ela hesitou. Aquilo era uma armadilha, sabia disso. Ele era o dono do labirinto, como o Bowie. Ela não podia se deixar enredar.

— Rod…

— Aqui é o melhor lugar para você, minha pequena princesa. E sabe disso. Veja, só vai sofrer se voltar para lá.

— Eu já tomei minha decisão, meu Senhor.

Ele sacudiu a cabeça:

— Pois está bem, então. Eu lhe darei mais uma chance. Mais uma. Depois, bom, será adeus.

— Adeus? Mas…

— Eu preciso de você aqui comigo. E nada mais. — Ele sorriu — boa noite, Sarah.


O celular despertou e Sarah acordou em uma cama que não conhecia. Olhou em volta, assustada, sem saber como fora parar ali. O clichê da cena a assustou e ela se levantou de um salto. Ouviu uma voz divertida por trás de uma porta:

— Por Deus, meu amor! Por que diabos você acordou tão cedo? Está de férias, esqueceu?

André saiu do banheiro, apertando a gravata e rindo para ela. Beijou-a nos lábios e passou a mão por seus cabelos:

— Juro que hoje saio cedo e poderemos viajar amanhã, está bem? Miguel já tomou café, ele está brincando no quarto, disse para ele ser bonzinho e não vir incomodar você.

— Miguel…?

— É. Acredita que consegui convencê-lo? Um bom papo de pai e filho e uma promessa de jogar no notebook quando eu voltar o fizeram mudar de ideia.

Ela sorriu. Devia estar ficando louca. Ele a envolveu pela cintura:

— Tenho que ir. Se eu não chegar cedo para revisar o caso, o Paulo vai ter um filho. E acho que seria parecido demais com ele para que valesse o risco. — Ele a beijou nos lábios — prometo chegar antes das seis. Tchau.

Ele saiu do quarto apressado. Ela olhou pela janela e o viu sair com o carro, acenando, dando uma buzinadinha e desaparecendo.

Correu os olhos pelo quarto. Era muito bonito, mobiliado ao seu gosto, sorriu. Sentou-se na cama, quase por cima de algo que parecia ser um telefone celular. Um modelo estranho, que ela nunca tinha visto. E que marcava a data de 24 de agosto de 2019. Arregalou os olhos, meio que sem entender e depois se lembrou de Rodriel. Claro… Ele estava tentando provar que fora de seu mundo de prata ela não conseguiria ser feliz por mais de uma dúzia de anos. Era típico dele. Sentiu as lágrimas de raiva subindo aos seus olhos. Era típico dele…

— Mamãe!

A porta se abriu e um garotinho pulou em sua cama, rindo:

— Papai disse para que eu não incomodasse você! Mas você está acordada, então não estou incomodando, não é? Não é?

— Claro que não… Miguel.

Ele riu e a abraçou. Seu corpinho era quente e feliz. Parecia-se incrivelmente com André, os mesmos olhos escuros e o mesmo nariz de batata. Ela sorriu:

— Você vai ficar o dia todo em casa, não é mamãe?

— Sim, vou sim.

— Eba! O que vamos fazer hoje então?

— Hum… Podemos ir ao parque e ao cinema. O que acha?

— Siiiiim! Está passando Aposentadoria de Monstros, podemos assistir.

— Está bem — ela o beijou sobre os cabelos. — Podemos assistir.


O sexteto final chegou e passou e quando Sarah acordou estava no banco do passageiro do carro, com André assobiando a música que tocava no rádio. Quando o radialista retomou a palavra, Sarah o ouviu dizer claramente “domingo, 24 de agosto de 2025. Sol, com algumas nuvens, sem possibilidade de chuva…”

Mais seis anos.

Quando olhou pelo espelho retrovisor, viu Miguel, meio pálido e parecendo nervoso. Parecia ter uns dez anos e usava o uniforme de um time de futebol. Ao seu lado, uma garotinha fazia caretas. Dessa vez, os seus próprios traços eram visíveis no rosto da menina e isso a fez sorrir. A pequena retribuiu o sorriso, com seus muito brancos dentes de leite.

Ela mal notou quando chegaram à quadra e o jogo começou. Miguel era o camisa dez e, pelo que podia perceber, era o seu primeiro jogo. Não conseguia entender muito bem como podia ficar tão ansiosa pelo menino que conhecia há apenas um dia e nem a sensação quente que a tomava quando a garotinha, chamada Talita, pegava sua mão.

Sarah gritou e esperneou várias vezes durante o jogo, bateu palmas e quase chorou de alegria quando o menino, com um belo chute de fora da área, abriu o placar, comemorando de braços abertos e sendo abraçado pelos amiguinhos.

No final, seu time perdeu por 3 a 2, mas toda a família foi tomar sorvete e comer pizza, exatamente nessa ordem inversa e estranha. Quando chegaram em casa, pediram para que o computador transmitisse um filme e eles assistiram a dois desenhos do antigo estúdio Disney. Se Rod achava que seu casamento seria uma droga depois de dez anos, estava muito enganado…


No dia seguinte, mais meia dúzia de ciclos, como Sua Majestade diria, tinham passado e ela foi levar o filho para prestar sua primeira prova para a Universidade. Mesmo depois de dezoito anos ainda existia vestibular! Ela ficou ligeiramente deprimida…

Talita tinha crescido bastante nesses seis anos. E André começava a ficar careca e ria disso como se fosse a coisa mais natural do mundo. Ainda estavam juntos o que a deixou bem contente e pareciam bem. Roeram as unhas durante as quatro horas de prova de Miguel, passearam por um parque, foram ao shopping, tomaram um lanche. E no final, voltaram para casa. Simples, mas sem maiores transtornos e sem chão de prata…


De seis em seis as coisas se passavam para ela. O sexteto passava. Miguel se formou em Letras, enquanto Talita estudava Direito. Nos outros seis anos, ela conheceu sua nora e sua primeira neta nasceu. Nesse tempo, os carros já flutuavam e o sistema de governo tinha mudado para o parlamentarismo. A música atual conseguia ser pior do que o saudoso funk e uma nova leva de escritores geniais havia nascido e formado uma Academia paralela. Os cientistas descobriram uma vacina para o HIV, mas um novo vírus havia surgido e matado muitas pessoas no sudeste da África. Era a bola da vez e vários médicos se mobilizaram para atender aos necessitados, incluindo o namorado de sua filha. A vida era tranquila, calma, serena. Rod tinha errado, ela fora feliz por trinta e seis anos.

Até aquele sexteto.

Ela acordou com o som de vozes murmuradas. Todos a olharam quando ela se ajeitou no banco, olhares piedosos e cheios de condescendência. Seu irmão pegou-lhe pela mão e ela a sentiu fria. O que estava acontecendo?

Usava preto.

Ele a ajudou a se levantar e seguiram em silêncio:

— Ainda bem que você conseguiu descansar um pouco. Tenho certeza de que André ficaria chateado se te visse assim…

Ela o encarou. Ficaria?

Seguiram por uma alameda e só então ela se deu conta de que estavam em um cemitério. Aquilo a fez começar a tremer. O que tinha acontecido? O que…

Pararam. Havia uma fileira de pessoas em volta de uma cova aberta. O caixão ainda era baixado e ela começou a tremer. Não…

Queria gritar. Berrar, espernear, mas ao invés disso abraçou o irmão. Queria perguntar o que havia acontecido! Procurou pelos filhos no meio da multidão e não os viu. Não os viu e isso a fez tremer ainda mais. Seu corpo foi tomado por espasmos e lágrimas estranhamente geladas. Foi aí que percebeu: ao lado do túmulo de André, em pedra branca, iguais, imutáveis e perpétuos, as lápides de Miguel e Talita. Uma tragédia.

Desmaiou.


Quando acordou estava em casa e o silêncio era terrível. Seu irmão dormia em uma cadeira e parecia ter envelhecido uns dez anos. Sabia que aquilo era impossível, os anos passavam de seis em seis e o seu sexteto ainda não tinha chegado… E ela não queria que chegasse.

Sentou-se. O quarto estava uma bagunça. Sobre a mesa, um jornal velho, de dois anos antes, anunciando uma tragédia. Um desabamento em um shopping perto das festas de fim de ano. Vários mortos, entre eles, Talita e Miguel, além da filha do rapaz e sua esposa. Mortos sob os escombros. Soterrados enquanto faziam compras. A dor pareceu rasgá-la e por um minuto foi difícil respirar. Depois André… Morto… Possivelmente de tristeza por ter perdido seus dois filhos.

Ser feliz por tanto tempo e depois… A dor…

Rod fizera aquilo, torturara-a, mostrando o quanto ela poderia ser feliz e depois… A imortalidade cobra seu preço. E a mortalidade também.

Levantou, cambaleando. Era o fim, seus filhos estavam mortos, seu marido, morto. Trinta e seis anos jogados fora, lançados ao vento, terminados. Queria vomitar…

Arrastou-se para o banheiro. Podia ouvir seu próprio coração. A imagem no espelho era velha, muito além dos sessenta que ela devia ter. Velha…

Dentro do armário, comprimidos para dormir. Depois da morte dos meninos, veja, nada mais restou…

Ela começou a chorar, colocou meia dúzia na mão direita e os engoliu, sem pensar em mais nada.


Quando o celular despertou às seis da manhã, ela se assustou com o som de Midnight in Paris. Estava em seu apartamento de solteira, com seu pijama com paletó de bolsos e com o rosto molhado por lágrimas de uma dor que viria. Dor antecipada. Começou a soluçar e a tremer, agarrou-se a si mesma, tremia tanto que seu corpo doía.

Pensou em não ir trabalhar, em procurar André, se agarrar a ele e nunca mais soltá-lo, nunca mais… Mas não podia fazer isso, ele perguntaria qual era o problema e a acharia louca. Você vai morrer daqui a trinta e seis anos, depois de nossos filhos morrerem em um desabamento… E eu vou me matar para poder encontrar vocês…

Louca.

Não. Ela se arrastou da cama e se arrumou para o trabalho. Tinha uma conta para fechar, uma grande propaganda para uma empresa do governo. Tinha de se distrair…

Estava no automático.

Almoçou ao meio-dia como sempre, sem sequer notar o sabor da comida. Voltou, teve uma reunião desastrosa com sua chefe e às seis horas ficou presa no ônibus pelo dobro de tempo realmente necessário para o trajeto. Sentia-se tão infeliz que podia morrer…

Quando chegou em casa, fez um balde de pipoca e ficou em frente ao computador, assistindo a vídeos divertidos no Youtube. Naquele momento, para ela, eram pretensamente divertidos. Quando a pipoca acabou, ficou brincando com o milho que não havia estourado. Tentou se distrair com eles. Quantos eram? Quantos caberiam em seu bolso? Por que será que não tinham estourado? Estava tão deprimida que poderia morrer.

Enfiou as mãos nos bolsos do pijama para que elas parassem de tremer e fechou os olhos. Queria falar com Rod, perguntar se ele estava brincando com ela, se queria torturá-la, seria isso?

Tinha um livro para ler, mas não quis sequer tocá-lo. Apenas esperou, esperou pela meia-noite, esperou por ela, que quando chegou, partiu sem qualquer mudança de luz, sem qualquer momento de prata, sem nada.

Sua frustração chegou ao ápice à uma da manhã. Chorava tanto que nem conseguia pensar direito. Toda a dor dali a trinta anos, toda ela, somada ao desespero de saber que não podia fazer nada para evitar, nada! Gritou contra o travesseiro, até que estivesse rouca demais, sem ar, exausta.

Até que adormeceu.


O quarto onde Varsa sempre a recebia estava vazio. Sem criada, princesa ou vestido novo. Ela caminhou para a porta e a abriu, os sons do banquete eram audíveis ali e ela seguiu em direção a ele, sem se preocupar com seus pijamas ou seus pés descalços.

Tinha de encarar o maldito Rei do Labirinto!

A multidão se voltou para ela, vários já estavam sem máscara e bêbados. Algumas garotas já estavam prazerosamente apoiadas em seus parceiros, alguns jogos sensuais já haviam começado ali mesmo. Ela estava furiosa demais para prestar atenção em qualquer coisa que não fosse Rod.

Varsa se levantou quando a viu, foi correndo em sua direção. Hoje usava rosa e parecia uma menina de orelhas compridas, ela a segurou pelo braço:

— Não é uma boa hora, Sarah…

— Eu quero falar com seu irmão…

— Ele não está de bom humor hoje. Eu… — ela a empurrou delicadamente — eu contei para ele que não posso me casar, Sarah, por favor…

Ela se libertou do aperto da princesa e seguiu para o estrado. Viu Alana, usando uma máscara dourada, boquiaberta pelos seus passos decididos. Ela libertou o rosto para ver melhor a cena que viria a seguir.

— Rodriel, quero falar com você!

Agora era ele quem vestia azul. Um azul escuro que se tornava quase preto quando a luz mudava. Ele parecia irritado:

— Eu não chamei você aqui! Não quero falar com você! Saia!

— Você não tinha o direito de me mostrar aquelas coisas!

— Eu já disse para sair!

— Você mentiu sobre aquelas coisas! Nada daquilo era real! É um maldito mentiroso!

O salão ficou em silêncio, encarando a garota de pijamas e o Rei vestido em sedas escuras. Ele se ergueu, seu poder pareceu fazer a Lua se apagar, várias de suas antigas amantes se encolheram e Varsa, ao lado de Sarah, soltou um gemido:

— Sarah, vamos, por favor. Ele vai machucá-la, por favor…

Mais uma vez Sarah repeliu Varsa, estava irritada por ela defendê-lo. Estava irritada! Não era um fantoche, não era!

— Você não pode chamar o seu rei de mentiroso!

— Você não é meu rei.

Ele sorriu, dessa vez, seus dentes pareceram ameaçadores. Ele saltou a mesa com uma facilidade assustadora e a agarrou pelo braço.

— Quer falar comigo, então venha falar comigo.

Ele a puxou do estrado novamente em direção à sacada, mas desta vez, toda a gentileza havia desaparecido.

— Eu apenas mostrei o que vai acontecer. Aquele é o seu futuro! Não gostou do que viu? — Ele estava rindo dela, zombando.

— Você não tinha o direito de me mostrar aquelas coisas!

— Por quê? Ele vai te abandonar grávida? Ele vai te espancar é isso?

— Você sabe muito bem o que vai acontecer!

O sorriso de Rodriel foi lento e intenso, ele sacudiu os cabelos e seus olhos brilharam:

— Você vai ser feliz, você estava certa. Mas claro, deve doer quando tudo é arrancado de você. Deve doer. Mas como vocês dizem mesmo? “Que seja infinito enquanto dure”?

Ela quis esbofeteá-lo, arrancar-lhe os cabelos:

— Mas claro — continuou o Rei — você vai se torturar durante cada dia da sua vida, vai se torturar imaginando a dor que os seus garotos vão sentir. Quando vir seu filho marcando gols ou sua menina se formando na faculdade, vai só conseguir pensar nas horas de agonia sob as pedras, no ar acabando, nos ossos quebrados. E depois, André, o doce André cada vez mais deprimido, cada vez mais perdido e de repente, você estará sozinha.

— Você… É mentira! Você mentiu sobre tudo aquilo!

— Na verdade, devo ter quebrado meia dúzia de regras para mostrar para você como será a sua vida se não nos aceitar. Eu não sou um mentiroso, meu amor. Não. Eu jamais mentiria para você.

Ele a envolveu pela cintura e rastejou a mão livre por baixo do paletó:

— Não. — Ela prendeu a respiração ao senti-lo pressionando seu seio. — Eu não menti. Eu só mostrei para você a verdade. Uma verdade chata, com a qual terá de viver pelos próximos anos, aguentando em silêncio a dor antecipada de perder tudo. A dor de ficar sozinha. A sua dor. — Ela gemeu e por um instante não soube se foi pelo toque dele ou por saber que o que ele dizia era verdade. — Você pode escolher agora. A escolha, meu amor, não é entre eu ou eles, é entre você ou eles. Você sofrerá. Só você. O fim deles — ele maneou a cabeça — mesmo o do seu querido noivo, será rápido comparado ao seu.

Ela o empurrou, a Lua o envolvia de um jeito delicado. Ela era mais uma de suas amantes. Mais uma. Mais uma vez enfiou as mãos nos bolsos, estava tremendo de novo. Como podia ser tão estúpida…

Naquele instante ela sentiu. Bastava que comesse, bastava que provasse algo para ser mandada para o outro mundo. Sentiu-se fraca. Podia fugir, mas agora, odiava tanto Rod, odiava-o tanto que queria matá-lo. Queria mandá-lo para o Inferno. E sentia, sentia, sentia aquele movimento em seus dedos, havia parado de tremer e sentia… Apenas sentia…

— Eu sou sua. Eu vou ficar.

Ele riu e a abraçou. Beijou-a na boca, sobre os olhos, no pescoço. Ele a desejava, desejava-a imediatamente e ela queria afastá-lo, mais do que nunca, queria que ele fosse para longe dela! A voz dele estava rouca quando entraram novamente no salão:

— Sarah vai ficar! Ela ficará! Tragam a sobremesa!


Seu pijama destoava das belas roupas do estrado, mas ela não se importava. Gostava dele, não quis trocá-lo quando Varsa a abraçou e lhe propôs um vestido. Não, gostava de seu pijama quente e queria ficar com ele. Precisava dele.

Dessa vez não era bolo. Era um mousse branco, também com as pequenas frutinhas alaranjadas por cima. Bonito, parecia delicioso. Ela se levantou no momento em que o criado se aproximou com a bandeja, tomando duas taças. Colocou-as sobre a mesa, todo o salão estava em silêncio, olhando para ela.

Rod se levantou e pegou-lhe a mão, ergueu-a e a beijou diante de todos:

— Juro, você será feliz aqui.

Ela não respondeu, passou uma das taças para ele, as frutinhas reluziam, como os olhos do rei.

— Bem vinda, meu amor. — Ele pegou sua pequena colher de prata e mergulhou-a no doce, lentamente, quase como se o gesto lhe desse algum prazer escondido. — Bem vinda!

Ele levou a colher à boca e todos no salão o imitaram. Todos, exceto Sarah que o esperou engolir e sorriu, um sorriso frio e cansado, mas um sorriso.

Rodriel se dobrou em dois e recuou, derrubando seu trono com um estrondo. Ele a encarou, sem entender o que estava lhe acontecendo. Que dor era aquela? O que era aquilo? Varsa se levantou e amparou o irmão. Ele a repeliu com o braço.

— Afaste-se! — Sua voz era rouca, engasgada. Sarah ainda sorria, levou a mão ao bolso do paletó do pijama e lançou sobre a mesa uma coleção de milho para pipoca mal estourada. Alguns negros, alguns marrons, alguns laranjas e brilhantes.

Os olhos de Rodriel se arregalaram e ele esticou a mão cheia de veias azuis em direção a Sarah:

— Você… — e desapareceu.

O silêncio do salão se transformou em uma gritaria. Parte dos convivas começou a gritar e a correr para a saída, outra parte demorou ainda alguns segundos para entender o que havia acontecido. Alguém, um membro da nobreza sentado no estrado, desmaiou. Alana riu de seu lugar:

— Você deu para ele comida humana!

E os guardas começaram a correr para o estrado. O coração de Sarah disparou, eles iam matá-la, ela mandara o rei para o mundo humano, sem prata, sem lua, sem imortalidade. Ele possivelmente não era nada mais do que um monte de pó. E os guardas vinham em sua direção…

— Não! — Era a voz de Varsa. Os guardas pararam, hesitantes. Varsa levantou do trono do irmão, seu rosto parecia tenso, sério. Ela se virou para seus convidados. — Voltem aos seus lugares.

Sarah piscou ao ver que todos a obedeciam. Alguns lentamente, outros surpresos, mas todos obedeciam. Todos. Varsa era a nova Rainha do Labirinto.


— Bom, eu acho que é isso, então.

Varsa sorriu, parecendo novamente a menina de orelhas compridas. Estavam sozinhas. Sarah e a nova e majestosa monarca.

— Sim e não. — Ela pegou as mãos da garota. — Obrigada, Sarah, e desculpe.

— Pelo…

— Rodriel queria te torturar por mais alguns dias, deixando você desesperada o suficiente para que quando chegasse aqui, se entregasse para ele. Eu… — Ela pareceu envergonhada. — Eu a chamei aqui, sabia que você faria alguma coisa, você não é como as outras garotas dele… — ela sacudiu a cabeça. — Ele descobriu sobre Alana e eu, ia matá-la depois do banquete.

— Você me usou — foi suave, uma acusação que não soou como uma. Saiu quase como uma carícia, um agradecimento.

— Sim. Desculpe.

Sarah a encarou. Varsa parecia muito, muito jovem. Não tinha ideia de quantos anos ela teria, quantos séculos, mas ainda assim parecia uma adolescente.

— Esqueça.

— Você… Vai voltar para casa?

— Vou. Vou, no final das contas, nunca se sabe o que pode acontecer. E André… Bom… “Que seja infinito enquanto dure”.

Varsa sorriu e a abraçou.

— Você será sempre bem vinda aqui. Eu estou em dívida com você e… — ela lhe entregou uma caixa, dentro dela, uma dúzia de pequenas frutinhas laranjas — Se um dia mudar de ideia, eu a receberei.

— Obrigada Varsa. Muito obrigada.

Acordou ao meio-dia e não foi trabalhar.


Uma dúzia de anos se passou quando Varsa, a Rainha do Labirinto, foi receber sua amiga Sarah nas portas de seu castelo. Seu marido estava com ela, assim como seus dois garotos sorridentes. Teve de sorrir ao ver suas orelhas despontando debaixo dos cabelos dos quatro.

Eles tinham vindo para ficar.

Author: Jessica Borges

Jéssica Borges, 27 anos, é formada em Letras pela Universidade de São Paulo. Autora de contos já publicados e ensaiando os primeiros passos no romance e na novela, tem como objetivo encontrar a arma certa para derrotar sua pior inimiga: a procrastinação. Tem seis cachorros e acredita piamente que Buffy, a caça vampiros, deveria ser considerada patrimônio cultural da humanidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *