Rosas Brancas

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Uma rosa branca balança lentamente na brisa.
O coração de uma mulher é partido pela traição.
—Lance Carthen

 

Quando Mara Nunes deixou a casa do Prof. Perseu Sunne, ela foi atingida por pétalas e botões de rosas brancas, sopradas do jardim de Perseu pelo pouso repentino de um flutuador da polícia.

Mara buscou o detonador na bolsa, por entre os preciosos cristais de dados, e o sacou com a trêmula mão direita. A forma compacta do flutuador descia diante dela, as luzes policiais rasgando a noite e atingindo o seu rosto, pregando sua sombra contra a parede do corredor que ia da casa de Perseu à garagem. Ela hesitou, a arma em punho, cabelos batendo no rosto. Os canos duplos da metralhadora e do paralisador químico da viatura não estavam apontados para ela. Eles ainda não a tinham visto — ela saíra pela porta dos fundos do escritório secreto de Perseu, semi-oculto entre as roseiras.

Lembrou-se das instruções que os foramundo lhe haviam passado: botão verde, antipessoal; botão laranja, anticarro. Pressionou o botão laranja na culatra do detonador. Havia aprendido a atirar na Esquadra Colonial, antes de ser designada para a equipe de liaison militar com o laboratório de Perseu Sunne. A blindagem da viatura não resistiria ao disparo de um detonador M-8, arma de uso proibido na Terra, franqueado apenas às tropas coloniais e às da Esquadra da Esfera, anos-luz longe dali.

Mara apertou o gatilho.

O flutuador policial despencou do ar numa bola de fogo, incendiando o jardim. Mara deu as costas ao calor, meteu a arma na sacola e correu para a garagem, perseguida pelas chamas. Evitou pensar no policial, ou policiais, que tripulavam o flutuador.

Tomou o carro de Perseu e partiu. Passou pelo seu próprio veículo, estacionado na estrada de acesso à propriedade rural do cientista-chefe da Trans-H-Utilidades. Então pisou no freio eletromecânico, sacou novamente o detonador e, com a mesma afobação e a mesma mão trêmula, mandou o seu próprio carro pelos ares. Talvez confundisse os policiais por algum tempo, enquanto ela fugia rumo ao ponto de encontro com os foramundo.

Não sabia muito a respeito deles, apenas que tinham posse de Bella. E pela filha, Mara faria qualquer coisa, até mesmo entrar na casa de Sunne sob falsos pretextos, e obrigá-lo, sob a mira da arma, a entregar os cristais com os dados que os foramundo exigiam. De algum modo, porém, enquanto conversavam, Perseu havia conseguido acionar a polícia.

Mas o que Mara pensava agora era que havia ameaçado matar o pai de sua filha.


— Eu lhe dou os discos, Mara — Perseu havia dito. — Não sei pra quem você trabalha, nem importa. Pode levá-los. Apenas me deixe em paz.

Agora ela imaginava que fora tudo fácil demais. Sabia que o console do carro de Sunne seria capaz de ler os dados criptografados. Ela havia arrancado de Perseu a senha do encriptador quântico, embora isso não fizesse parte do acordo com os foramundo. Mas como eles poderiam ler os dados sem o código? Enfiou o primeiro cristal no leitor-laser, enquanto antecipava com os olhos a aproximação de outras viaturas policiais, pairando nos céus de Campinas. O computador de bordo, com as instruções digitadas por ela, fez o carro rumar para o interior, para a grande área reflorestada às margens do Rio Quilombo. Mara abria arquivo após arquivo.

A Trans-H-Utilidades fabricava acessórios para a comunidade trans-humana — ou “aumentada” — do Bloco Latino na Terra e nas colônias. Mas o projeto contido nos cristais ia muito além disso: era um ser humano artificial completo, mistura de órgãos criados pela engenharia genética e de componentes mecanoeletrônicos que cresciam no corpo humano. Um exército de nano-organorrobôs metabolizava uma dieta especial de minerais e compostos orgânicos e os usava para construir os componentes em harmonia com os tecidos celulares, sem ofender o sistema imunológico. Era o próximo estágio, o protótipo dos super-homens do futuro. Os colonos perfeitos para os mundos subterrestres — ou os soldados perfeitos para os campos de batalha entre as estrelas.

Parte de Mara admirou-se da mente visionária do seu ex-amante. Perseu Sunne. Perseu e a sua súbita, nunca justificada, rejeição de Mara quando do nascimento de Bella.

Bella e sua misteriosa doença autoimune, diagnosticada pelos médicos do caríssimo convênio pago pela Trans-H-Utilidades. Crescendo com vitaminas e suplementos especiais para, diziam, regular seu sistema imunológico; não passando um aniversário sem complexas baterias de exames, sem dias de internação nas clínicas pagas pela empresa de Perseu.

Mara deteve o carro à beira da estrada, num trecho em que árvores antigas se debruçavam sobre o pavimento. Apanhou a bolsa e saltou.

Caminhou cerca de trinta metros para dentro do mato e deteve-se. Sacou da bolsa mais um aparelho que os foramundo lhe haviam fornecido. A tela plana registrava num gráfico 3D os movimentos de dois flutuadores policiais a menos de três quilômetros dali. Mara lançou-se mais fundo mato adentro. Tinha alguns minutos antes que o carro fosse descoberto. Talvez um pouco mais, se as viaturas parassem para investigá-lo.


Logo encontrou os trilhos abandonados, mantidos ali como em um museu a céu aberto, lembranças do mundo low-tech que havia levado a este. Agora sua corrida para resgatar Bella era literal, pés tropeçando entre restos de dormentes e moitas altas de capim colonião, o rosto batido por galhos de mamona.

O rastreador mostrava a aproximação dos flutuadores, e os discretos óculos de visão noturna pendurados no nariz de Mara iluminavam-lhe o caminho. Quando os policiais tornaram a decolar e se colocaram na distância ideal para o rastreio infravermelho, ela já tinha o despiste de hastes plásticas e tecido termoativo instalado num dos trilhos, disparando para longe dela na velocidade que uma mulher em forma conseguiria desenvolver no escuro. Mara jogou-se entre as moitas e cobriu-se com o lençol de material semelhante ao utilizado no despiste, para mascarar a sua assinatura de calor, igualando-a à do ambiente em torno.

Os foramundo haviam antecipado tudo, e a preparado bem. Seu equipamento era caro e sofisticado — nem na Esquadra Colonial ela havia manipulado um tecido termoativo tão eficiente. Manteve a arma em punho, enquanto os flutuadores passavam silenciosamente acima dela. Quando os perseguidores descobrissem o despiste, fariam nova varredura, e ela não tinha tempo a perder. Os foramundo lhe haviam dito para evitar a violência, não acreditavam que a polícia faria uma caçada humana apenas pelo roubo de dados de Perseu, mas Mara não podia arriscar.

Desta vez precisou de cinco disparos, para destruir os flutuadores — e seus tripulantes.


Antes ali existira um bosque de eucaliptos e as primeiras edificações de uma cidade, tudo agora retornado à natureza subtropical do Sudeste brasileiro.

Mara vagou por algum tempo entre as árvores, repensando tudo o que descobrira. Estava próxima do ponto de encontro, mas ainda não estava pronta para acionar o sinalizador que faria o veículo furtivo dos foramundo se elevar por entre as samambaias e abrir uma escotilha para permitir sua entrada — ou a saída de Bella.

Sobre o casal que a procurara, Tera e Tiago, sabia apenas que não eram da Terra. Sua cor era estranha, diferentes dos tons mulatos da própria Mara Nunes. Bronzeada pela radiação solar de um outro mundo, distante da Terra, distância ainda denunciada pelo estranho sotaque do seu português. Com certeza vinham de uma colônia latina, mas agiam a mando do seu governo local, ou intermediavam a venda dos dados secretos à Euro-Rússia, à Ásia Centro-Oceânica, à Aliança Transatlântico-Pacífico? Sabia apenas que eram profissionais a serviço de uma potência rival no esforço humano de colonizar novos mundos.

Queriam o segredo da fabricação de pessoas que cresceriam com aço no lugar de ossos, feixes fibrópticos no lugar de nervos, processadores enraizados entre cadeias de neurônios. Mas não iriam se contentar apenas com cifras e gráficos de nanodinâmica molecular.

Eles nunca lhe devolveriam Bella.


O detonador estava em sua mão direita quando a nave furtiva elevou-se do terreno, desmembrando samambaias e despejando folhas no ar, com um cheiro de mato cortado. Mara pressionou o botão verde e ocultou a arma atrás da coxa direita. Aguardou, ainda ofegante e coberta de suor, que a comporta se abrisse. Tera, a mulher, surgiu no alto da rampa, acompanhada de um sujeito que Mara não conhecia. Tiago, o homem que fizera par com Tera nas negociações pelo resgate de Bella, não estava à vista. O vulto pequeno da menina surgiu por trás da mulher. Tera a deteve com a mão direita espalmada.

Mara reconheceu um projetor eletromagnético na mão esquerda do homem. Um emissor de PEM. O detonador tremeu em seu punho direito.

— Você trabalhou muito bem, Mara — Tera disse.

— Deixe Bella descer — ela gritou. — Vou deixar a sacola com os discos aqui, e ela e eu iremos embora.

— Mãe… — Ouviu sua filha murmurar.

Tera fez a menina calar-se.

— Venha conosco, Mara — disse. — Se ficar aqui irá para a prisão e Bella será tomada de você. Já temos o que queremos, podemos muito bem levar vocês duas.

— Minha filha não vai ser cobaia de ninguém — Mara respondeu, levantando a arma.

Tera demorou a responder.

— Você entendeu tudo errado…

— Talvez. Mas vou arriscar a sorte aqui na Terra. — Empunhou o detonador com mais firmeza. — Deixe a minha filha descer, ou nenhum de nós vai sair deste bosque.

Tera sorriu.

— Tolice sua. E nós sabemos que você não foi exatamente parcimoniosa no uso da arma. O registro de energia tem um link com esta nave. Você não pode cumprir a ameaça.

Mara puxou o gatilho.

Se o detonador possuía um link de rádio com a nave, esse link não informava em qual modo o sistema estava operando. E se não havia energia para mais um tiro anticarro, havia o bastante para alguns disparos antipessoais. O estranho ao lado de Tera desabou, seu peito e suas costas abertos pela descarga de energia, e o emissor PEM rolou rampa abaixo.

Mara então apontou o detonador para o peito de Tera.

Não teve tempo de puxar o gatilho uma segunda vez.


Depois da escuridão, uma luz baça a envolveu, e pétalas e botões de rosas brancas choveram mais uma vez sobre Mara, caindo sobre seu rosto, tocando suas pálpebras, envolvendo-a com seu aroma. Ela esqueceu a arma, esqueceu a filha prisioneira. Esqueceu-se de quem era e do que fazia ali. Seu mundo reduziu-se a esse momento inicial de sua queda, ao movimento aleatório de riscos retorcidos, incertos, espiralantes das rosas despetaladas perante seus olhos, à sensação de um vento súbito soprando seus cabelos. A esse aroma fugidio frisado num segundo, perdido noutro, quando as pétalas tocavam suas faces.

Mara Nunes não estava morta, mas não voltaria a viver.


— Desligue o pulso eletromagnético! — Tera gritou para Tiago, enquanto empurrava Bella para dentro do aparelho e fazia subir a rampa.

— Pedro está morto — Tiago disse, anunciando o óbvio. — Que droga. E Mara?

— Ela nunca soube o que a atingiu. Foi esperto da parte dela mudar o detonador pra antipessoal. Se você não tivesse acionado a antena externa de PEM, meu corpo estaria caído sobre o de Pedro.

— Não há como salvar Mara?

— Não. Os sistemas eletrônicos do cérebro dela foram fritados. E a interface é estreita demais pra que sua mente tenha sobrevivido intacta. Foi reduzida a pouco mais que um vegetal. — Tera fez uma pausa, antes de dizer: — É evidente que não sabia de sua vulnerabilidade ao pulso eletromagnético. Mara atirou em Pedro porque achava que ele ameaçava Bella.

Tiago aproximou-se e tirou Bella do chão, aninhando-a contra o peito.

— A menina está em choque — constatou. — Não nos serve pra nada agora. Não sem a versão um ponto zero para o controle. Como Mara foi desconfiar, como deduziu tudo isso?

— Ela era boa, tão boa quanto Perseu planejou — Tera disse. — Assim que saiu da casa de Perseu e viu a unidade policial aérea, parte dos seus sistemas foi ativada pela situação de emergência. A ciborgue dois ponto zero, Bella, embora um projeto superior, é a versão imperfeita. E precisávamos das duas pr’os estudos comparativos.

Perseu chegara a um beco sem saída no projeto. Mara, sua primeira criação — composta em laboratório, tornada adulta por processos biológicos acelerados, equipada com falsas memórias implantadas de infância e juventude — era perfeita. Colocada nas forças armadas pelos oficiais generais que patrocinavam o experimento, havia se excedido em tudo, até retornar para junto de Perseu, para se tornar sua amante e auxiliar involuntária no próximo estágio do experimento. Perfeita exceto por um detalhe: por alguma razão desconhecida, Mara havia gerado uma filha com processos ciberbiológicos falhos, que debilitavam seu sistema imunológico. Bella crescia na taxa humana normal, mas mantê-la saudável a tornava cara demais. Os estudos diziam que Mara provavelmente não conceberia um modelo perfeito, numa segunda gravidez. E seria contraproducente criar outros como ela, apelando para um processo de crescimento rápido.

Perseu Sunne então decidira enganar os militares que o patrocinavam, e, ao invés de reconhecer que chegara a um beco sem saída, vender os dados do projeto e os seus dois protótipos aos asiáticos.

— O erro de Perseu foi manipular Mara pra trazer os cristais até nós e despistar a polícia — Tiago disse. — Cobrir suas pegadas. Saiu pela culatra.

— Se ele tivesse demorado alguns minutos mais antes de acionar a polícia, talvez Mara tivesse ficado mais tranquila e não teria lido os arquivos… Só isso explica como ela foi capaz de deduzir que Bella fazia parte do experimento de Perseu, que estava incluída no pacote.

— Perseu acreditava que se demorasse muito, as autoridades desconfiariam dele. Precisava acionar a polícia assim que pudesse. Confiava que Mara, com a nossa ajuda, conseguiria despistar os policiais. — Tiago fez uma pausa, e então perguntou: — O que faremos com a menina?

— Vamos ficar com ela — Tera disse, sem hesitar.

— Está louca?

— Temos dinheiro o bastante pra mantê-la — argumentou. — Se pudermos estabilizar a situação imunológica de Bella, ela vai ser útil pra nós no futuro. A maior parte dos sistemas especiais de Mara estava desativada, e ainda assim ela foi uma mulher física e mentalmente superior. Bella será uma super-humana de fato, quando ativarmos os dela. E a nosso serviço. Perdemos Pedro, mas ganhamos um novo e valioso recurso. É um meio de tirar algum proveito deste fiasco.

Torcia para convencer seu companheiro, mas a verdade é que não suportaria ter de se livrar friamente da criança.

Tiago sorriu para ela, como se compreendesse suas intenções.

— Está bem. Ela vem conosco. Espero que você tenha uma história tão boa quanto esta pra apresentar aos asiáticos, quando perguntarem o que deu errado.

— Vamos dizer-lhes que, sem o primeiro modelo, não havia porque ficar com a versão dois ponto zero. Entregamos a eles os cristais e dizemos que jogamos a menina no espaço, como garantia de que nunca seríamos associados ao caso.

— É um risco bem real, se ficarmos com ela — Tiago disse, sorrindo e fazendo um afago nos cabelos de Bella.

— Vamos pagar pra ver — Tera disse, com outro sorriso.


Trêmula no colo de Tiago, a pequena Bella Nunes ouvia tudo o que o homem e a mulher diziam, no estranho português que em poucas horas ela havia aprendido a entender. Mas apesar de compreender tudo, pensava apenas na mãe caída entre as árvores, o peito ofegante e o olhar vazio, abandonada no meio da noite. Queria exigir de Tera e Tiago que voltassem para pegá-la, mas sabia que seria inútil.

Também sabia, sem bem entender como, que falavam dela — e que, aos cinco anos de idade, embarcava numa jornada sem volta. Deixaria a mãe para trás, sua cidade, seu mundo. Estes dois estranhos ficariam com ela e lhe diriam o que deveria fazer, e com o tempo, Bella sabia sem bem entender como, a vida que ela conhecera até então ficaria para trás, deixaria de ter a forma que ela conhecia, como a flor que perde as pétalas. Bella aos poucos se esqueceria de quem havia sido, e viveria assim o resto de sua vida, sem nunca saber quem fora ou poderia ter sido.

 

Para Philip K. Dick (1928-1982)

Author: Roberto de Sousa Causo

Roberto de Sousa Causo é autor dos livros de contos “A Dança das Sombras” (1999) e “A Sombra dos Homens” (2004), dos romances “A Corrida do Rinoceronte” (2006), “Anjo de Dor” (2009) e “Glória Sombria” (2013), e do estudo “Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil” (2003). Sua novela “O Par” ganhou o 11º Projeto Nascente. Tem contos publicados em onze países. O selo da série Shiroma é criação de Vagner Vargas.

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