Aranha

Lá se vai mais um neguinho do Glicério metido com droga, tagarelava a vizinha numa praça qualquer da Baixada, para quem quisesse ouvir. Fossem crianças que brincavam de bola, os botequeiros que se embriagavam de cerveja e risadas ou os jovens de bombeta que se drogavam nos cantos escondidos da rua.

Mas o menino a quem se referia, ela viu em outra praça, mais movimentada e conhecida: a Praça da Sé. A mãe acabara de partir ladeira acima, arrastando a filha mais nova. Já era noite e o garoto não havia voltado.

Também, continuava a linguaruda, com uma família dessas! Mãe solteira com um filho de cada homem, e que não para em casa. A filha mais velha vagabundeia até altas horas por aí. Logo mais tá parindo também. O coitado do menino tinha que cuidar da irmã mais nova que só vive doente; precisava de uma boa benzedeira. Agora virou um trombadinha. Afinal, por que mais ele passaria a tarde toda papeando com um preto moribundo no meio da Sé?

O pirralho tinha um vício a alimentar e encontrou um fornecedor na Sé, ela tinha certeza. Queria vender uma parte e usar o resto.

O pirralho era Heitor. E o que Heitor queria era histórias.

Curioso que só, metia os ouvidos cá e lá. De onde vinha as orelhas de abano, explicava Maia, a irmã de quatorze anos. De rabo de olho, lia as notícias dos jornais, as conversas nos celulares e os livros em mãos alheias; daí os “zóiões”, zombava a mais nova, Antônia.

Naquela manhã mesmo, carregava três pães quentinhos na fila do mercado — um para ele, um para cada irmã. A mãe saiu para trabalhar em jejum e deixou umas moedas na mesa para os pães; comeria algo na casa da patroa. Heitor queria saber porque a senhora à sua frente havia lotado o carrinho tão cedo, enquanto o rapaz antes dela apressava-se para levar apenas um leite em pó e dois maços de cigarro. O leite é para crianças com mais de um ano, alertou a moça do caixa.

Opa!, o homem correu para trocar, segurando a fila impaciente. Um filhinho! Por isso a compra rápida e urgente. O moço deveria parar de fumar! Heitor havia lido também todos os avisos dos maços na vitrine da padaria e jogados pela rua; nenhum final feliz.

Ai, moço, demora não, suplicou a senhora. Virou-se à prestativa caixa e contou que a netinha viria visitá-la e queria recebê-la com um bolo de chocolate. Se o moço demorasse, não daria tempo!

Por isso a compra recheada de guloseimas, percebeu Heitor. A boca encharcou-se. Bem queria um bolo de vó. Perguntou aos dois como eram as crianças. Ambas meninas. A do moço faria o primeiro aniversário em breve, a outra acabara de fazer quatro. Assim como a própria irmã caçula! Duas crianças fofíssimas; ao menos aos olhos-coruja de pai e avó. Heitor apenas imaginava.

Eram crianças de muita sorte, regadas de amor e presença.

Ainda soube que nem o moço nem a senhora eram de São Paulo, como ele; o moço recém-chegara de Cabo Verde. A avó retirou-se do Piauí há quase cinquenta anos! O menino de dez arregalou os “zóiões” com o tempo desmedido. Apesar das tantas coincidências, as histórias tornavam cada um, um.

Eis a magia.

Quando chegou em casa, os pães já estavam frios e ele atrasado para a escola. Enfiou tudo na boca e saiu.

“Por isso esses bochechões!”, disseram as irmãs em uníssono.


A Baixada do Glicério era repleta de praças e contos. No cotidiano ou nos livros, contemporâneos ou ancestrais, de Américas, Ásias e Áfricas. Mas Heitor queria mais: histórias de São Paulo, de mundo.

Voltava da escola ainda fantasiando as histórias do mercadinho. Já tinha merendado e não tinha dever de casa. Tinha de buscar Antônia na creche só às cinco. Passaria a tarde na Sé.

Garis, ambulantes, sacoleiros, ciganos, viajantes, sem-tetos, empresários e Heitor. Fosse quem fosse, a Sé recebia qualquer um que, no final do dia, quisesse apenas um prato de comida e uma noite de bons sonhos. Prosas dos quatro extremos da simplicidade paulistana cruzavam o marco zero de São Paulo.

A Sé era mágica, ele sabia. Mas o que nunca imaginava encontrar, encontrou: sobre o espelho d’água, o espelho do tempo.

Sentado na passarela de metal que cruza a fonte, havia um velho homem negro. Quase tão retinto quanto Heitor e os cabelos, embora alvos, como a barba e as roupas, também lembravam os dele: crespos e ralos. As orelhas grandes e as marcas no rosto ossudo denunciavam as décadas que carregava. Mas, para Heitor, era o espírito mais vivo da Praça da Sé.

Era caminho dos transeuntes indo e vindo às pressas; ignoravam-no, como se não estivesse ali. Era cenário dos turistas que fotografavam a paisagem; cortavam-no, como se não existisse.

Se não existia, por que desviavam?

Seriam os olhos? Embora já derrubados pelas bolsas da idade, intimidavam. Profundos até a alma, como olhos de aranha. Ele fumava um cachimbo e tecia algo. Heitor não sabia dizer se um manto, uma bata ou uma vida. Entrelaços perfeitos como a natureza. Lembrou-se da mãe, sua primeira contista. Entre laçadas de tricô, narrava fábulas, rememorava suas próprias meninices em Gana, contava lendas ancestrais para ninar o pequenino Heitor.

E quem disse que o sono chegava?! O menino não queria o ponto final; fossem nos contos, fossem nos panos. Ambos o fascinavam. Quando os calos se formavam nos dedos de Abena, ela cessava. Então, a madrugada se preenchia de fantasias e sonhos acordados. Uma de suas histórias favoritas, ouvira aos cinco. Era sobre o nome da mãe, Abena. Significava “nascida em uma terça-feira”. Ela, as duas irmãs mais velhas e as quatro mais novas ocupavam todos os dias da semana, em sequência.

“A vovó é uma bruxa!?”

Abena riu-se, pois havia perguntado o mesmo à própria mãe na idade de Heitor; quando a última irmã nasceu em um sábado. Então explicou que a avó não era uma bruxa, mas tinha a sabedoria dos antigos.

“Os antigos eram bruxos!”, Heitor concluiu.

Desde que a mãe começara um curso técnico de enfermagem e o estágio noturno, Heitor não ouvia mais suas histórias. Saía antes do amanhecer e deitava com as roupas do trabalho. Quando logo não dormia, chorava. De exaustão, estresse, saudade, culpa.

Já do pai, nunca ouviu um conto. Heitor sequer sabia seu nome. Era a única história que Abena sempre se recusou a narrar. O homem se foi antes do nascimento do garoto. Maia — filha do mesmo pai de Heitor, diferente do que pensava a vizinha — o conheceu, mas a mãe a proibiu de mencioná-lo. Se ele não quis ser pai, Heitor não tinha de ser filho.

Já Antônia convivia com o pai. Era do Cambuci, bairro vizinho. Costumava levá-la ao Parque da Aclimação aos sábados.

Após Antônia chegar com uma nova boneca e um novo sorriso de um domingo com o pai, Heitor fizera birra. Queria porque queria saber sobre seu pai; por que não tinha? Onde ele estava? Como ele era? Por que o deixou? Insistiu à mãe. Abena só conseguiu o distrair com uma história sobre uma esperta aranha que enganara até os deuses, contando histórias ao redor do mundo.

Heitor era como aquela aranha: preenchia-se com histórias.

“Me conta mais uma?”

O senhor levantou os grandes olhos para o menino. Heitor sentiu os pelinhos da nuca arrepiarem, as pernas amolecerem e o sorriso se abrir.

“Qual história, meu filho?”, embora a voz do homem fosse baixa, Heitor a sentiu vibrar pelos seus ossos. Tinham algo de íntimo a compartilhar. Algo de pele, de sangue, de alma.

Respondeu sem titubear: “Do mundo!”

O velho mostrou os dentes escuros e tortos. O mundo acontecia em São Paulo. E de São Paulo, podia contar qualquer história. Começou pela própria Sé. Quando, antes de ser Praça, era Largo. E como era bonita! O Largo da Sé não tinha pretensão de ser paisagem, futuro ou Europa. Apenas Sé.

“Você nem imagina, meu filho.”, os olhos de Heitor cintilavam com as palavras do homem: além de sabido, tinha muito bom gosto.

Então, fizeram o metrô… o velho dizia que o metrô era a mais venenosa das serpentes que já conhecera. E os passageiros que se amassavam e eclodiam da estação, lembravam o mais selvagem dos vespeiros.

“Antes fossem cobras e vespas!”, esbravejou. Heitor perguntava-se porque, então, o homem ficava na Praça que tanto detestava.

Antes que pudesse questionar, ele emendara outro conto: o bairro da Liberdade, hoje central, era periferia da cidade. Heitor ficou boquiaberto. Como São Paulo havia crescido! O velho colecionava anedotas sobre o bairro, pois vivera ali por décadas. O encanto do Palacete Conde de Sarzedas? “Castelinho do amor” nada! Diziam que foi erguido pra amada francesa de um aristocrata do século XIX, mas o homem sabia a verdade. Parou a costura e aproximou-se do ouvido de Heitor para cochichar, sem sequer ponderar a idade do garoto: “Aquilo era pra festinhas libertinas de uns figurões do governo.”

O garoto arregalou os “zóiões”. O velho também e ambos riram à beça, como crianças travessas que eram.

“O amor não cabe aos ambiciosos, meu filho…”, refletiu por fim, tornando a tecer. Então, falou sobre as almas negras escravizadas e executadas na Praça da Forca. Dissera tê-las conhecido. A Liberdade, antes de Japão, era resistência. Contou dos amigos que perdeu, mas que ainda estão por lá. “À noite, aproveitam a Lua para celebrar a alforria da vida na Capela dos Aflitos. Não sei se tomei a melhor decisão quando não quis morrer.”

Heitor queria saber a idade do senhor. Parecia antigo como São Paulo, como mundo… demoraria mesmo uma eternidade para viver tantas histórias.

A tarde ia-se entre contos e laços. O sol já estava tímido, a temperatura havia caído e Heitor se encolhia. Logo precisaria buscar Antônia, mas antes queria saber mais uma história. Levantou-se e inflou o peito de coragem. Entre todas as curiosidades, perguntou:

“Por que o senhor tem oito olhos?”

E os oito olhos negros se arregalaram.

“Você vê?”

Como não veria?

“Me conta!”, Heitor bateu o pé no metal, tomado pela ansiedade. Os oito olhos o atraíam; os oito olhos o afastavam. Negros e profundos, como olhos de aranha.. “Por favor…”

O menino enxergava o senhor por inteiro. Um dia, Heitor pensou, seria como ele: espalharia histórias pelo mundo.

O velho finalizou a peça tecida e entregou a Heitor. Uma camisa. Heitor agradeceu com um sorriso tímido. Não esperava ser para ele. Adequou-se ao seu corpo e aquecia na medida certa. O homem o enxergava por inteiro.

“Minhas histórias são como tesouros, meu filho. E esta é a mais preciosa do meu baú.”

E fumegou o cachimbo.

Heitor mal se aguentava, mas aguardou. Aprendia a passos lentos que cada história tinha um tempo certo, e esse tempo deveria ser respeitado.

“E não vou te contar”, decretou, enfim. O menino abriu a boca, mas os oito olhos baquearam o protesto e a voz não saiu. “Mas… tem apenas uma história que não conheço em toda São Paulo. Se você me trouxer ela, eu te dou todas que você quiser. O que acha?”

“Me conta!”, repetiu Heitor. Desta vez, deixou, sem pudor, a euforia desenhada no rosto, pintada no olhar.

O velho divertiu-se com a juventude e tossiu uma risada. Alguns transeuntes cruzavam a passarela, e o velho se virou para eles abruptamente e gritou: “Vocês não vêem?”. Eles se assustaram com a abordagem repentina, mas seguiram rindo e trocando murmúrios sobre a insanidade do moribundo.

“Eles não vêem, meu filho”, murmurou, então, a Heitor. E tornou a baforar o cachimbo. “Não vêem São Paulo. Não querem ver. Veja você, então: São Paulo dá esperanças pra quem chega solitário, de outras terras. Dá sonhos pra quem só conhecia a miséria.”

Heitor sorriu confortável. Lembrou-se da senhora piauiense e do rapaz cabo-verdense que conhecera no mercadinho da Baixada. São Paulo era mágica.

“Mas São Paulo também é vaidosa”, os oito olhos que o encaravam ficaram ainda mais escuros e o sorriso do menino apagou. “Em troca, toma os contos de mundo pra si, e só pra si. Amaldiçoa quem desafia seus encantos, quem conta suas histórias. E ela me amaldiçoou. Tirou o que eu tinha de mais valioso, minhas jóias mais puras. Não enxergo mais… De que me servem estes oito olhos, então?”

Perguntou mais a si mesmo que para Heitor. Os olhos enegreceram ainda mais, perdendo qualquer brilho, parecendo apenas buracos vazios. O cachimbo se apagara. A alegria do menino desapareceu.

O que ele havia perdido?

Duas fadas.

Heitor ouviu a voz do homem ao vento. Então, teve certeza: os oito olhos viam sua alma; e falavam com ela.

“O quê?”

“Duas fadas. Dois espíritos encantados. Primeiro, São Paulo me presenteou com uma fada”, contou. “O ser mais encantado que já conheci! Um presente generoso da cidade, mas eu queria mais. Ela me ofereceu a segunda, meu filho. Não aceitei. Já não era o suficiente pra mim. Eu achava que não. Queria descobrir as outras magias de São Paulo! E consegui. Mas minhas fadas… eu já não as conheço mais, até que me conheçam primeiro.”

O nó na garganta se apertava a cada palavra. Tentava segurar as lágrimas, pesavam toneladas. Se caíssem, denunciariam a culpa que o senhor carregava. Não tinha direito a errar, mas havia errado. Não tinha direito a chorar, mas queria. Apontou em direção à saída mais próxima da estação da Sé. Com o passar do tempo, uma massa cada vez maior de pessoas subia as escadas e se espalhavam. Heitor se via naquele senhor, conhecia o vazio também e ambos preenchiam-se com histórias. Mas o menino não acumulava as rugas de culpa e arrependimento. E, se aquele homem era seu futuro, ele não queria as rugas. Apenas o espírito que o atraiu até as escadas da Catedral.

“Qual o seu nome?”

Os oito globos negros arregalaram. Há tempos o velho não dizia seu nome; há tempos não era importante.

“Aranha.”

Heitor divertiu-se com a conveniência. Uma esperta aranha, certamente.

“Vou trazer a fada, senhor Aranha!”, então correu, metralhando a passarela de metal com os passos rápidos.


Na Estação da Sé, os olhos que Heitor temiam não eram aracnídeos. Mais pareciam de leopardos que o espreitavam diariamente, esperando um vacilo para dar o bote. Notou-os na estação. Ao lado de uma das lojinhas de roupas e bolsas, do quiosque de salgados e dos guichês de passagem. Todos fixos no garoto, que sentou no chão frio e recostou-se em uma pilastra em frente às catracas.

Milhares de pessoas passavam por ele. Milhares de contos, nenhum de fadas. Mas lembrou-se da esperta aranha que podia encarar uma serpente gigante, sobreviver a um enxame de vespas venenosas, encontrar fadas nunca antes vistas e até vencer um leopardo feroz para conseguir todas as histórias do mundo. Ninguém o ouvia. Teria ele oito olhos? Sentiu-se Aranha.

Um homem perguntou como pegava a linha Vermelha, outro queria embarcar na Azul e uma moça incluiu até a Coral, que partia da Luz. Lembrou-se da irmã Maia, que tinha de encarar a Sé e Luz naquele horário diariamente. Compadecia-se dela, embora ela estivesse feliz pelo primeiro emprego formal como assistente administrativa. Ela costumava cuidar de crianças ou carregar as compras da feira para os vizinhos por algumas moedas. Agora, como aprendiz, tinha um salário mínimo.

Alguém parou: um leopardo.

“Tá fazendo o quê aí, moleque?”, indagou o homem de farda. Segundo ele, Heitor incomodava os passageiros. Segundo Heitor, ele se incomodava sozinho. O menino disse que esperava alguém.

“Ah, é? Quem?”

Como a esperta aranha, embora fosse presa fácil, Heitor percebia o mundo ao seu redor. O resto da alcateia se aproximava. O mais faminto apoiava a mão no coldre. Os transeuntes estavam cabisbaixos, murmurantes, desconfiados. Ainda desviavam o olhar, mas se interessavam por aquela história; Heitor temia saber o final.

“Ninguém em especial, senhor”, respondeu. Sua mãe lhe ensinou desde cedo que leopardos não acreditavam em contos de fada.

Eles sempre pediriam suas histórias, mas nunca ouviriam.

“É mesmo?! Levanta e vem comigo, moleque!”, o leopardo rosnou e sacou as algemas da cinta.

“Mas eu preciso ficar…”

Em um instante, o fardado agigantou-se sobre o menino. Cravou as garras no braço magro de Heitor. Ele não era como a mais esperta das aranhas. Não poderia encarar os leopardos ferozes. Talvez nem mesmo ela pudesse; não em bando. O menino reprimiu um berro, mas os olhos encheram-se. Lágrimas de dor e medo.

“Parem!”

Heitor parou. O policial parou. Os passageiros pararam. O tempo parou.

As mãos para cima, a respiração ofegante, os olhos arregalados, os lábios secos, as pernas pesadas, tremiam. Era Maia.

Ver seu irmão sendo devorado era um pesadelo recorrente; dessa vez, ela não estava acordando.

“Por favor… ele é meu irmão… ele…”, a voz vacilava; batalhava para falar em vez de vomitar. “Ele está me esperando.”

Os gatos escaldados não cederam à Maia, mas as dezenas de celulares filmando a cena eram como água fria. Soltaram Heitor e foram-se a passos silenciosos, enquanto os irmãos se abraçavam. Os murmúrios da estação voltaram; alguns passageiros se aliviaram, outros se afastaram, ainda marcando o menino com o olhar.

“Não fiz nada, Maia… eu juro”, choramingou Heitor, marcando a camisa da irmã com lágrimas.

“Eu sei.”, ela compreendeu. “Mas o que tá fazendo aqui? Não foi buscar Tônia?”

Heitor desviou dos olhos julgadores da irmã. Pela primeira vez, preferia guardar uma história. Porém, Maia não se contentaria. Contou, então, das histórias de São Paulo, das fadas, do senhor de oito olhos na Praça.

“Heitor…”, a voz da irmã quase desaparecia. “Onde está esse homem?”

O garoto agarrou a mão da irmã; gelada, trêmula. Maia parecia ter uma arma apontada para si. Ela insistiu para que se apressasem para encontrar Aranha. Heitor a guiou. Pela estação, pelas escadas rolantes, escadas comuns, pela outra Praça da Sé que só se revelava ao anoitecer.

Os postes já a iluminavam parcamente. Menos câmeras fotográficas nas mãos, mais sacos pretos. Alguns vasculhavam os latões de lixo por uma sobra de marmita ou uma lata de refrigerante. Outros rodeavam um homem que falava sobre a missão de Deus para cada um deles em frente à Catedral. Outras rodinhas se formavam, compartilhando um pão velho, uma dose de cachaça, uma bituca de cigarro, um sorriso. Um grupo de jovens de coletes distribuía sopas, meias e mantas.

A Lua intensificava a magia na noite paulistana, Heitor lembrou-se. Abrilhantava os sorrisos e celebrações das almas na Capela dos Aflitos e tornava visíveis as pessoas deitadas no chão da Sé. Heitor encantou-se.

E a irmã parou.

“Maia?”

A mão da irmã, ainda gelada, suava. Embora retinta, estava pálida. Os olhos presos ao velho sentado no meio da passagem.

Maia…

Duas vozes se cruzaram pelo ar. Uma era brisa suave, a outra era vendaval. A primeira carregava esperança. A outra determinava o fim.

“Finalmente posso te ver.”

Completou a primeira voz, velhaca, aracnídea, no meio da passarela. Maia correu para Aranha. Pela primeira vez, Heitor viu o velho se levantar. Ele abriu os braços, pronto para um abraço eterno. Não a abandonaria; não de novo.

“Maia!”

Repetiu a segunda voz. Era Abena. O suor escorria, arfava. Antônia, mais clara que o resto da família, estava corada. Abena intrometeu-se entre Maia e Aranha. A ponte que os ligava já não existia. Abena suplicou com os olhos.

A garota ainda mirava o homem. Lançou-o à dores do abandono. Ele respondia com as dores do remorso. Ambos sentiam as dores da saudade.

Maia escolheu a mãe.

Abena recebera um telefonema da creche à caminho do curso: Heitor não aparecera e Antônia chorava. Em casa, ele não havia pisado. Na praça, ninguém o tinha visto, exceto a vizinha. O filho estava sentado lá na Sé, com um velho preto. Certamente, metido com droga, disse a tagarela. Abena sabia que não. Sabia que era aquele homem.

Fique longe deles, Ananse!

Heitor nunca ouvira aquele tom de voz da mãe. Era de congelar os ossos.

Ananse ajoelhou-se, envolveu-se em seus próprios braços e chorou. Já Abena, enlaçou as filhas. Um abraço que protegia e desculpava-se. Mesmo exausta como nunca, seu escudo materno era tão vedado que sequer Ananse poderia transpassar.

Mas a mais esperta das aranhas, sim: Heitor. Passou o escudo-coração. Abena o chamou. Queria impedi-lo, protegê-lo, mas o menino, curioso que só, tinha direito a qualquer história. Passou pelas três mulheres de sua vida para chegar no homem que nunca esteve nela.

“Por que o senhor me deixou?”

“Meu filho…”, então calou-se. Aranha não sabia contar aquela história.

Lágrimas caíram por dezesseis olhos negros e profundos.

Author: Sérgio Motta

Sérgio Motta é um escritor negro morando em São Paulo, cidade de fantasia, caos, diversão e diversidades que adotou como musa. Está sempre falando de arte, negritude (e a confluência de ambos) no Twitter. Publicou "Ciberbochico" pela Mafagafo, "Aline na Avenida das Paulistas" e escreve no blog Resistência Afroliterária.

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