Orion-z3n

3rro meu pensar que podia falar qualquer coisa pra ela. Andava meio “triste” nos últimos dias. Por incrível que pareça, isso é crime. Pelo menos fiz a porra da operação, talvez durma melhor agora. Foda é ter que achar alguém que ainda venda flop-disks de respiração e relaxamento. Vou ter que falar com hipsters oitentistas. Argh.

— 85%?

3la diz isso como se estivéssemos falando de porcentagem de merda ou leprasaturniana no meu corpo, como se não fosse ela quem tivesse pedido pra eu fazer algo a respeito do ronco. 3u ronco, aliás, roncava, depende da época que você tiver lendo isso.

— É, 85%! 3 daí? Quem é 100% hoje em dia?

— 3u sou. Todo mundo aqui também é. E você também era, não consigo acreditar que jogou fora o que a gente tinha junto por um pulmão de aço mais barato.

— Que diferença faz? 85 ou 100? São só números, caralho. Eu ainda sou eu.

— Não, não é. Só 85%.

0s amigos dela, bebendo “euforia” e “egocentrismo”, com o que pareciam ser algumas notas de “pedantismo livre de culpa”, nem cogitaram fingir a cara de nojo em meio aos sorrisos plastificados de orelha a orelha. 3ssa estátua gorda não é Sidharta Gautama seus retardados de merda, é Hotei. Neo-budistas do caralho. A porcentagem deles brilha tanto que não conseguem ver mas nada.

— 0lha, não sei como dizer isso, mas não vou enrolar muito, a gente não tem mais sincronia nenhuma, não tem mais nada a ver.

— 1sso é porque eu fiquei triste esses dias?

Todo o lugar para de fazer o que estava fazendo e me olha com cara de espanto. Literalmente todo o lugar, inclusive o teto e as paredes.

— Cala a boca! Tá maluco? 3u não quero ser presa, ainda mais aqui!

5ó pra constar, ela tava exagerando, ninguém ia preso por ficar triste há anos e não foi culpa minha, era só a segunda advertência do governo, eu tava sem grana pra “felicidade rotineira” e algum letreiro me fez lembrar o meu gato. 0 governo te fode pra te deixar feliz e se tu não tens grana pra pagar e ficar triste por isso, tu te fode mais ainda.

3 essa chuva que nunca para. Claro que ajuda no controle dos impostos de felicidade.

Tempos malucos.

Devia ter tomado quinze gramas de “paciência” pra contar isso pra ela. O problema é que pra lembrar de tomar “paciência” eu teria que tomar vinte e cinco gramas de sei lá, “lembrardecoisasinutéis” e dizem que é perigoso misturar os dois e pilotar. 3la mexeu nas minhas pílulas antes de sair. Por isso não achei os tubos certos.

Costumava abrir as narinas quando irritado, fazia sem perceber mesmo. Agora com as duas peças de titânio filtrando minha respiração deve ficar mais explícito ainda. Pelo menos não ronco mais.

3la me puxa pra um canto enquanto os amigos abrem um pacote de plástico biodegradável com castanhas clonadas embaladas a vácuo.

— Não posso ser vista com um 85%, não aqui, pelo menos. Pensei que tu ias fazer algum tipo de tratamento mais caro, algo não artificial, algo orgânico sabe? — 5ei lá, algum exercício de respiração venusiano, reconfiguração genética, algo assim. 3 não fala aquela palavra por aí, pelo amor do espaço!

Não se pode nem dizer “triste” em lugares públicos hoje em dia. É lei federal.

Devia ter tomado trinta gramas de “paciência”. 0 soldo não cobre esse tipo de coisa, moça. Ela sabe que foi escrota e agora quer consertar. Típica condescendência. Devia estar no champagne.

— AI, ESPAÇO! Olha, quer saber? Foda-se, fica ai com teus amigos 100% e tua comida pura que eu vou embora, ok? — Dizem que “raiva” é o que mais demora a ser filtrado pelo corpo. E tem um gostinho tão bom.

100%…pff. Foda-se. 3ssa perfeição toda me dá vontade de vomitar. Vou ter que pilotar por horas pra esquecer essa história. Que saco. Não tem nenhum bar decente nessa área. Preciso de uma dose qualquer que seja; daqui a pouco começo a sentir por mim mesmo, que horror.

Desço uns 30 níveis pra observar o movimento das ruas e poder procurar melhor. Quem tem os olhos atualizados com implantes móveis pode ver minha porcentagem, junto com meu número de série social. Preciso me acostumar com isso. Falar é fácil, mas ser um porcentual e existir num mundo dominado pela minoria 100% é um pesadelo.

0s sintéticos aposentados batem no vidro pedindo alguns créditos ou qualquer coisa que valha tentando controlar a explosão de sentimentos que a cada minuto dominam suas mentes para parecerem dignos de pena. Não sei quem está mais abaixo na pirâmide social, os sintéticos ou os porcentuais como eu. Quando os marcadores de oxigênio não pagos chegarem a zero, todos vão sentir muita coisa ao mesmo tempo e não sei se invejo ou não, esqueci a cor dessas pílulas, devem ser as amarelas.

Não esboço reação, sequer abaixo o vidro. Não tomo uma dose de “empatia” há muito tempo. Aliás, depende da época que você estiver lendo. Depois da viagem no tempo, situar algo escrito em determinado horizonte temporal fica complicado. Você sabe. 5e o seu governo tiver autorizado publicação temporal retroativa, sei lá.

Vejo um gato levando um peixe com listras azul-fluorescente na boca entrar numa nano-portinhola na esquina de uma ruela e reaparecer em cima do balcão de um pé-sujo romeno-chinês, receber um carinho da balconista e pular pra dentro da cozinha.

3spaço! Tomara que não me faça sentir.

— 8onito gatinho, é original?

— Claro que não, se eu pudesse ter um desses não estaria aqui.

— Qual o nome dele?

— 3rnesto.

— Tipo aquele cara?

— Não, é só um nome cinza pra um gato cinza.

5ou péssimo com diálogos em apenas uma janela, sem a rede pra pesquisar meios rápidos de quebrar o gelo e, afinal de contas, ninguém se conhece aleatoriamente hoje em dia. Bárbaros talvez.

3 mesmo eles devem usar algum algoritmo de rede social pra calcular possíveis parceiros sexuais ou de conversa. Afinal, não dá pra imaginar outra forma de fazer isso.

3 agora eu tenho essa porra de 85% flutuando em cima da minha cabeça, não importa o que eu faça.

Quase dá vontade de sair da Terra de vez. Quase.

3u estive lá fora e se o lugar fosse meu, alugava pra mutantes radioativos por metade do preço e me mudava pro inferno.

— Você acredita em coincidência? — 3la pergunta como se a gente se conhecesse há eras e soubesse o que eu ia responder.

— Não, esses implantes são muito caros. — 3u sabia que ela tava falando em acreditar de verdade com sentimentos de verdade, mas queria ver aonde aquilo ia.

— De todos os bares dessa parte da cidade você escolheu esse, no meu turno ainda por cima.

— 0lha não me leva a mal não, tu até que é bem gatinha, mas não tô interessado, ok? 5ó achei curioso o truque do gato.

— Não é isso, idiota, tenho que entregar isso.

3la se abaixa pra pegar alguma coisa e nesse meio tempo me faz sentir confusão, curiosidade e excitação ao mesmo tempo. Limpo, sem tubos, sem nada. 3la deve ser bruxa.

— Toma, guarda isso. — 3la me dá um flop-disk amarelo dourado. 5ério mesmo, daqueles dos anos 80 de tais MBs ainda, pelo amor do espaço. Coincidência estranha, admito.

— 5ério? Que porra é essa? Fotos picantes que tua bisavó passava pro teu bisavô?

— O novo Buda, a nova Morrigan, Cristo, o novo Kamen Rider. Depende do teu Hard-drive.

Ah não, ladainha religiosa essa hora da madrugada, e ela era tão gatinha. Ei, decepção e atração de graça, a conversa pelo menos deu lucro.

— Qualé, guria, que foi que tu tomou hein? Diabo de sincretismo bizarro é esse e que caralhos 3U T3NHO A V3R C0M 155O? — 3la tá me dando um pico de curiosidade e ansiedade melhor que qualquer tubo e eu tô tentando fingir não estar amando cada segundo.

— Você fez uma operação recentemente, não fez? — O meio sorriso dela, enquanto leva os dedos cheios de anéis até a boca, cheia de uma paz tão plena, uma segurança de saber das coisas do mundo que só gente muito velha tem, aquela poeira dos dias acumulada na alma que quase me frita de tanta empatia. É bizarro sentir de verdade, ela é uma bruxa com certeza.

3spera aí, se controla, cara. Nada impressionante, tem um aviso luminoso na minha cabeça.

— 3 dái? Dá pra ver né. Minhas narinas fazem estática cada vez que eu respiro.

— Foi uma operação barata, clandestina, do tipo que ainda lê esse tipo de flop-disk.

Tempos malucos.

Brahma, Javé, Goku, ou seja lá quem manda nisso tudo, resolveu descer pra cá de novo, e não foi recentemente. Flop-disk? Pelo amor do espaço, o cara tá desatualizado. Quando se usava isso? Nos anos 90?

Melhor que um anjo com trombeta ou estrela e cocheira e reis magos e tal e coisa.

— 3 porque diabos tu tá me dando isso, guria?

— 3u sou a escolhida, alpha e ômega, a avatar, a messias, A mulher. O disquete simplesmente apareceu na minha caixa de entrada na boca do 3rnesto, e tudo fez sentido. 3u vi o que aconteceria, aconteceu e acontecerá ao mesmo tempo quando formatasse o disquete a assimilasse a informação. Deus se escondeu em 42 mb de memória e se dispôs a esperar um usuário. Alguém que fosse 100%. Alguém digno. 3u poderia quebrar o corporativismo-biomecânico e o domínio sócio-emocional em massa. Libertar os sintéticos, descolonizar os planetoides e dar mais vida aos replicantes. 0u pelo menos fazê-los lidar melhor com a vida curta. Quebrar a rede e talvez até fazer parar de chover.

— 3 o que te impede?

— Preguiça, sabe? Tenho minhas tintas, minhas poesias, tenho meu gato e meu bar, não preciso disso, estou plena. Além do mais, quem é 100% hoje em dia?

3la faz carinho no gato, deixa o disquete em cima do balcão, dá um sorrisinho, ajeita a camisa caindo no ombro e vai lá pra dentro. 3u entendo a deixa.

Só de tocar no treco, percebi que era tudo verdade. Lembro dos amigos esnobes brindando Gumbai, dando moedas a Hotei e acendendo incensos. Todos 100%.

3ncaixo o disquete entre a terceira e a quarta costela antes de decolar. Sentir é uma palavra muito limitada pra descrever o que aconteceu depois. 3u vi o fim e o começo, ao mesmo tempo, múltiplas vezes em níveis e realidades diferentes. Vi os Raios-C pulsando no escuro de novo, mas dessa vez eu não tava com medo. O javali, o peixe, o homem azul, a mulher rosa, o príncipe dos Vaishas, o nazareno, a moça queimada na Inquisição, a curandeira esquimó, o skatista, a boxeadora, a mutante, o sintético e finalmente o disquete.

O aero-deslizador se aproxima da minha casa e tem lixo da semana inteira. Fico planando por alguns minutos antes de acoplar e aterrissar. Normalmente fumo dois maços de “calma” antes de entrar em casa, mas sinto que se toda a companhia pegasse fogo e eu fumasse toda a calma de uma vez, não se compararia a esses 42 mb rodando nas minhas costelas. Não dá pra descrever o peso de ter isso dentro de si e ao mesmo tempo o êxtase do poder.

Tempos malucos.

Entro em casa, a porta fala comigo. Me sinto pleno, como nunca soube que seria possível. Sinto tudo e nada ao mesmo tempo.

Proprietário Humano reconhecido; aumento de 15%. Taxa atual de perfeição: 100%. Arquivo novo reconhecido God.exe, deseja acoplar/copiar/deletar?

Quem é 100% hoje em dia?

Deletar.

Author: Noam Moraes

Noan Moraes, 26 anos, é um estudante de Letras que talvez tenha lido quadrinhos demais na infância e que vê o mesmo filme repetidas vezes até decorar todos os detalhes. Sente a necessidade de explorar e expressar a falta de sentido de sua vida de todos os jeitos possíveis. A mais satisfatória é a escrita.

1 thought on “Orion-z3n

  1. Interessante a dinâmica criada com as emoções artificiais, aparentemente futurista, mas muito atual quando olhamos para o consumo de substâncias químicas como os antidepressivos, bebidas alcóolicas, nicotina, cafeína… O mérito do conto está em demonstrar isso com maior dicernimento.

    A questão que vai se propondo no diálogo do bar quanto ao “100%” é curiosa, porém penso que o autor da um salto muito brusco para o surgimento paradoxo do “GOD.exe” . O que é um paradoxo em si – e talvez por isso se justifique. É uma lógica que me agrada como argumento racional, mas não me pega no quesito do entretenimento visto que sua fácil obtenção implica num “não se importar” no momento do seu deletamento.

    Ademais, admito que não fui capaz de compreender a real necessidade do uso de números durante o texto.

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