Editado por Rodrigo van Kampen
Começou quando tinha treze anos. Escorregou em um barranco e caiu no rio próximo a sua casa e, enquanto caía, pensava no impacto que lhe atingiria os ossos e na pressão que lhe sufocaria o peito, e calculava, naquele intervalo que lhe parecia tão infinitamente maior do que era possível entre a súbita perda do equilíbrio e o encontro de seu corpo com o leito do rio, se teria tempo suficiente para voltar à superfície antes que seu mundo fosse reduzido a água e acabasse em um último suspiro que lhe invadiria as narinas.
Quando o corpo afundou, descobriu que respirava, seus pulmões indiferentes à mudança de ambiente, parecendo não se importar que o mundo agora era líquido. Abriu os olhos e por um segundo esperou acordar em sua cama. Sentia, porém, o quanto tudo a seu redor era concreto, as bordas ásperas da realidade
Ficou submerso por horas, os olhos devorando o mundo sob o rio, surpreso com tanta vida, tão próxima, da qual nunca havia tomado conhecimento. Maravilhado, demorou a entender as implicações de sua descoberta. Quando se deu conta, foi tomado por um pânico tão grande que quase o sufocou da forma como a água não fizera.
Ele era um deles. Os que viviam sob as águas.
Lembrou de uma de suas primeiras memórias, o rosto de um dos “mergulhadores”, como os chamavam no vilarejo, torcendo a boca como se a palavra lhes pesasse na língua, o simples ato de nomeá-los contaminando seu dia. O rosto retorcido e cinzento do homem puxado à superfície ainda lhe assombrava os sonhos. Ali, a superfície era o único lar possível. E caso em algum momento alguém descobrisse que o ar cada vez mais lhe pesava nos pulmões, despedia-se de seus entes queridos (aqueles que ainda quisessem estar em sua presença) e nadava em busca de lugares melhores, onde meninos não se reunissem à margem do rio para atirar pedras nos poucos que, por falta de possibilidades, por coragem, esperança ou estupidez (e não eram estas duas últimas tão frequentemente a mesma coisa?) insistiam em permanecer próximos da comunidade que os criara.
Os dias após sair do rio foram dominados pelo medo do sufocamento que a qualquer momento começaria, pois os meninos que descobriam respirar sob a água em breve descobriam não conseguir respirar fora dela. Eram os meninos sobre os quais se cochichava no colégio, que tentavam disfarçar a concentração cada vez mais necessária para puxar o ar e que saíam do banheiro com olhos roxos quando eram pegos com o rosto mergulhado na pia.
Sentia-se um homem com os dias contados e procurava memorizar, em um esforço que lhe consumia as energias, todos os prazeres que em breve se tornariam impossíveis. Plantava os pés descalços na terra, deleitando-se na firmeza do solo, ancorado na solidez do mundo sob si, e sentava-se por horas na varanda de sua casa, sentindo o vento acariciar a pele e os cabelos, inspirando o ar em longas golfadas que eram ao mesmo tempo celebração e luto. E temia pelo futuro em que momentos como aquele seriam apenas lembranças cada vez mais distantes.
A cada dia em que acordava com o peito tão leve como no momento em que dormira, o ar lhe fluindo macio para os pulmões, experimentava um segundo de alívio seguido por um de perplexidade. Quando tais dias se seguiram por mais tempo do que julgava possível, quando a transição do sonho para a realidade deixou de ser choque e deslumbramento e voltou a ser o ponto rotineiro no qual se iniciavam seus dias, quando a terra sob seus pés e o vento em seu rosto perderam a aura de despedida, percebeu que a superfície não era apenas um ponto transitório no qual havia residido até encontrar seu verdadeiro lar, seus prazeres não eram pálidas sombras das maravilhas que lhe aguardavam sob a água. A superfície era seu lar e seu direito e sua história.
Olhava para o pai em sua máquina de costura, para a mãe debruçada alegre sobre a panela da sopa que preparava para o jantar, para o sorriso no rosto da menina que sentava a seu lado no colégio, e a ideia de abandonar tais coisas para que pudesse desfrutar da água lhe parecia representar tudo o que havia de injusto e irracional em seu mundo.
Sonhava com a água envolvendo todo seu corpo em um cobertor macio, com a sensação de flutuar com as ondulações, o corpo sem peso, naquele momento em que ele era o rio e o rio era o mundo. Mas sabia que tais prazeres lhe eram vedados enquanto quisesse andar nas ruas repletas das memórias de sua infância e dormir no quarto em que tantas vezes sonhara com seu futuro, sem nunca imaginar o dilema que enfrentava entre as difíceis escolhas que estavam por vir.
Abandonou o alívio do rio nos dias de calor, temendo que o chamado da água o vencesse, temendo que emergisse do mergulho pelo qual tanto ansiava e se deparasse com os meninos que por vezes se amontoavam em suas margens e com as pedras que os meninos atiravam naqueles que faziam do rio seu lar. Com os olhares dos meninos que o conheciam e que não tardariam a espalhar pela cidade que ele não era como eles e a observar com ferocidade o movimento de suas narinas quando o ar as penetrava e talvez, ao perceber que o ar lhe era tão doce quanto era para eles, redobrassem a urgência no anseio por expulsá-lo da superfície e a crueldade em suas tentativas de fazê-lo.
Sonhava com o dia em que partiria para as cidades sobre as quais os meninos cochichavam no colégio, com o tom daqueles que aos treze anos pensam deter todos os segredos do mundo, as cidades que, os pregadores gritavam nas ruas, um dia atrairiam sobre si a fúria das divindades. Aquelas cortadas por canais que abrigavam centenas, por vezes milhares, de pessoas que tinham as águas como lar, que expunham as crianças da terra à visão de suas pernas e braços e rostos, quando subiam rapidamente à superfície para desfrutar do sol por alguns momentos, onde adornos feitos com conchas no leito dos rios enfeitavam as paredes de respeitáveis mães de família. Ele ouvia os mais velhos mencionarem tais cidades como exemplo de tudo o que havia de errado com as novas gerações, e ansiava pelo dia em que chamaria uma delas de lar.
Quando chegou o momento de partir, descobriu que, como em todas as histórias sobre monstros, as que escutara eram compostas por fatos gravemente exagerados. Os canais em cada rua, com milhares de pessoas nadando alegremente sob eles, eram raros e fora de alcance, em países distantes para os quais suas poucas posses não lhe permitiam viajar e cujos costumes eram por demais diferentes para construir sua vida. Instalou-se em uma cidade em que, como tantas outras, algumas dezenas viviam sob o rio que a margeava, recebendo visitas ocasionais de amigos e parentes que viviam em terra e frequentemente acolhendo jovens que haviam enfrentado os gritos e os punhos de seus pais aos primeiros sinais de fôlego curto, jovens por vezes jogados no rio com fúria em madrugadas, após serem flagrados no fundo de piscinas quando imaginavam que todos em casa dormiam.
E por um tempo se inebriou de prazeres há muito esquecidos e nadou entre os peixes que habitavam o rio e encantou-se com as formas e as cores das conchas de seu leito e boiou por horas sentindo o sol lhe aquecer as costas enquanto os olhos percorriam com fascínio toda a vida que habitava sob as águas. E um dia sentiu algo tocar-lhe as costas e, ao virar-se e se deparar com uma borboleta, todo o seu foco se concentrou naquele ponto cor de laranja, uma beleza tão diversa daquela a que seus olhos haviam se acostumado no fundo do rio. Ela rapidamente partiu, e o encanto de seus voleios foi substituído pela dança das nuvens e o brilho do sol e o céu um quadro que mudava a todo instante, clareiras de azul logo cobertas por feixes de branco e a redescoberta de um mundo que há muito não via como seu.
E quando o manto azul e branco que o cobria tornou-se vermelho e roxo e negro, virou-se novamente para respirar a água e se deparou com os rostos atônitos e raivosos daqueles que passara a chamar de irmãos.
A perplexidade deu lugar à revolta quando compreendeu que os olhares desconfiados que recebia foram causados pela descoberta daqueles que, ao verem-no com o rosto virado para cima, supuseram com horror que estava morto e, enquanto decidiam o que fazer, foram surpreendidos por seu retorno, quando então a alegria de vê-lo vivo foi rapidamente suplantada pela compreensão de que o ar não o matara.
Viu, em choque, nos olhos de alguns dos que o cercavam o mesmo temor e desprezo presente neles quando recordavam a perseguição sofrida na infância ou alertavam os companheiros de que terrestres desconhecidos estavam próximos ao rio. Foi cercado por um coro de vozes que lhe interrogavam sobre suas motivações como se não partilhassem há meses do mesmo lar e do mesmo alimento. Queriam saber como ter certeza de que, durante a noite, ele não passeava sobre a superfície, poluindo depois a água com a terra e a poeira que inevitavelmente traria em seu corpo. Alguns, convencidos de que ele já vinha se engajando em passeios noturnos pela cidade, exigiam garantias de que não abandonaria suas funções junto à comunidade quando decidisse formar família com alguma moça que residisse longe do rio. Percebeu que, ainda que pudesse lhes fornecer as garantias que exigiam como se fossem seu direito, não poderia estabelecer um lar onde as fundações de sua vida poderiam ser ameaçadas pela simples contemplação de um dia de verão. Na manhã seguinte deixou o rio, sentindo o sol cobrir-lhe por inteiro como há muito não fazia.
E pela segunda vez na vida se viu sem lugar no mundo.
Andou a esmo, trabalhando em troca de abrigo, e em uma tarde enquanto dividia histórias com outros andarilhos, percebeu que uma moça sentada em uma mesa próxima ouvia tudo e ria e toda vez que ria suas tranças balançavam e o sol brilhava no branco de seu rosto diferente de como brilhava no negro da estudante que ele nunca esquecera, mas a sensação de vitória que o invadiu ao saber ser o responsável por aquele sorriso era a mesma, e por algum tempo ele acreditou que havia novamente encontrado um lar.
A água empenava a madeira, ela dizia. Ele nunca estava suficientemente seco quando voltava do rio e a água pingava no chão e se infiltrava no piso, que em breve estaria irregular e corrompido e diferente do que ela imaginava quando comprara a casa que o convidara a dividir com ela. Ele trazia entre os dedos a areia fina do fundo do rio, pequenos cristais ásperos ao toque, que a faziam franzir o rosto quando ele segurava suas mãos. Ela sentia o cheiro do rio em seus cabelos, o odor das flores que ficavam em suas margens, das plantas que cobriam o fundo, de seu suor misturado com a água doce. Quando ele vinha do rio, ela não queria beijá-lo.
Um dia, ao deparar-se com a já rotineira toalha estendida em sua direção, ele virou as costas e partiu. Ela não o chamou de volta.
Novamente andou sem rumo. Percorreu vilarejos e cidades, trocou beijos anônimos e nomes falsos, morou e trabalhou em lugares que, para todos que ali estavam, eram esconderijos ou o último lugar no qual tinham pousado antes que acabassem suas forças para continuar ou um ponto de parada entre um passado que desejavam esquecer e um futuro que não sabiam se conseguiriam construir.
Os dias de trabalho árduo e maçante ou de longas caminhadas em busca de pousada eram sustentados por uma visão: uma casa junto a um riacho, longe dos olhos de outras pessoas, cujo piso ele pudesse banhar com seus passos.
Construiu a casa com as próprias mãos, resistindo à vontade de mergulhar no riacho após os longos dias de labuta que o deixavam coberto de suor. O primeiro banho naquela água deveria ser especial e, após meses, aconteceu como havia planejado: com o último tijolo da casa no lugar, porém ainda sem telhado, o sol brilhava em cada gota que seu corpo deixava cair ao chão, cada uma delas um pequeno universo de luz que parecia conter em si promessas de uma vida nova.
Nos anos seguintes, passava horas deitado na grama, sentindo sua carícia em sua pele, observando o céu, sentindo o sol envolver os ossos, e então pulava na água, rosto para baixo, fascinado pelos padrões que a terra ia deixando conforme soltava-se de seu corpo, espirais que giravam na água e a coloriam, até finalmente desvanecerem-se. Amava a casa. Amava o riacho. Eram um bom refúgio. Mas não eram um lar.
Seus contatos com as pessoas eram curtos e esporádicos, sempre em guarda para o momento em que as ouviria reclamar do barulho insuportável que os mergulhadores faziam sob a água ou do cheiro nauseante de suor dos terrestres, que era possível sentir a quase um quilômetro de distância. Nunca soube o que mais lhe doía, se os interlocutores que pareciam certos de que ele concordaria entusiasticamente com seus comentários ou aqueles que o olhavam nos olhos quando os faziam, queixo em riste, malícia no olhar e dureza na voz, como que o desafiando a manifestar incômodo perante as palavras, como que gritando silenciosamente que ele estava fora de seu lugar, que ele era “um deles”, que ele não conseguia disfarçar sua podridão.
Um dia acordou ouvindo vozes, desnorteado pelo som tão incomum no lugar em que vivia, que escolhera precisamente pelo isolamento. Abriu a janela e deparou-se com um casal sentado à beira do riacho, os pés na água, olhando para o mundo ao redor com o fascínio de quem deleita-se não apenas com uma visão, mas principalmente com a oportunidade de poder compartilhá-la. Perguntou-se onde estaria a colega de sua infância e se ouvira os boatos que inevitavelmente a essa altura teriam inundado seu vilarejo a respeito dos lugares que ele havia habitado e das pessoas com quem havia convivido. Se ela havia encontrado outro que a fizesse rir como ria na escola e com ele formado uma família. Perguntou-se se os filhos dela jogavam pedras nos meninos assustados que nadavam sob o rio.
Naquela noite sonhou que vivia em uma das cidades sobre as quais os pregadores de sua infância bradavam e nadava em um canal com centenas de pessoas, até que alguém o lembrava de que precisava ir para casa e ele partia rumo a um suntuoso casarão em terra, e ela estava na janela, o rosto envelhecido mas ele sabia que era ela pois o sorriso brilhava igual. E ele a abraçava e a tomava pelas mãos e eles rodopiavam e eles riam, até que a água que escorria de seus cabelos caía formando sulcos no rosto dela, o negro de sua face escorrendo onde a água a tocava, ela perdia a cor e a culpa era dele, perdia o rosto e a culpa era dele, e a moça das longas tranças surgia e lhe gritava que fosse embora, ele não via que estava empenando o chão?
Quando acordou, chorou como há tempos não fazia, as lágrimas que caíam no chão parecendo zombar dos pequenos arco-íris líquidos que ele havia observado com deleite no dia em que ocupou oficialmente aquela casa, lhe dizendo que ele era ingênuo e estúpido e arrogante por pensar que eram eles seu destino, e não o quarto no qual agora se encerrava, querendo evitar o encontro com o casal, evitar a cumplicidade perturbadora que lhe destinavam aqueles que enxergavam nele um igual, evitar as palavras que ouviria sobre sua sorte de viver tão próximo de um riacho livre de mergulhadores. Evitar talvez a forma como o olhariam, procurando em seu corpo e cabelos os indícios que a água deixara, avaliando como dirigir-se a ele, e se poderiam confiar em um homem que vivia tão próximo a um riacho. Evitar a maneira como se sentia nesses momentos, um par de olhos que se somaria aos deles, atento a seu corpo, que era evidência e risco e denúncia.
Não foi ao rio naquele dia.
Os dias que se seguiram foram preenchidos pela presença do casal, invadindo a casa pelas frestas das janelas.
Em uma manhã acordou com a ausência das vozes e dos risos que haviam se tornado seu pano de fundo. Sem comer, levantou-se, ultrapassou a porta que não abria há semanas, e lançou-se ao rio, olhos fechados, o mundo inteiro suspenso enquanto deixava a água percorrer o corpo.
Depois de muito tempo imóvel percebeu que a água se movia à sua volta. Abriu os olhos e viu ao longe duas formas que rodopiavam leves, um redemoinho que lhe pareceu familiar, embora não soubesse explicar o motivo.
A dança prolongou-se por toda a manhã, um balé tão gracioso e tão puro que sua tristeza por não imaginar nada semelhante em seu futuro dissipou-se rapidamente, como areia sob as águas. E seus olhos os seguiam por onde iam e lhe pareceu que dançava com eles.
E houve um momento em que tudo o que restava sob a água eram os pés da moça e ele entendeu que era ela a mesma que observara de sua janela tantas vezes, sentada na margem do rio e que passara as últimas horas sob ele e agora voltava para a superfície e ele era novamente aquele garoto de treze anos, perplexo e deslumbrado e desnorteado pela rapidez com a qual o mundo como conhecia podia tornar-se obsoleto.
Quando emergiu, viu que ambos boiavam, olhos fechados e mãos unidas, corpo semisubmerso, o sol brilhando nas gotas em seus rostos. Não se aproximou. Não queria interromper o deleite da novidade, o senso de possibilidade que aquela visão lhe despertava, o frescor que parecia envolver o mundo a sua volta. Sabia que tal visão era o prenúncio de muitas coisas boas e novas e belas, e desejava agarrar-se o máximo possível à tal certeza, a qual não se sustentava em nada além de sua exaustão. Queria continuar naquele momento, prolongá-lo, absorvê-lo por tempo suficiente para que pudesse viver nele caso o que se seguisse fosse mais daquilo que vinha sendo sua vida há décadas.
Entrou novamente em casa, sem secar o corpo, querendo que, ao sentir a água, pudesse manter-se naquele momento por mais tempo. Se sentou à janela e passou a observar o casal, tomado pela sensação de que todo o seu futuro estava contido nas duas formas que via ao longe. Expectativa ou medo eram emoções por demais intensas para que ocupassem um lugar em sua vida, há tanto tempo composta por gestos contidos, pela vigília de si mesmo e o esforço constante e quase não mais notado de não esperar nada além do que já tinha. O deslumbramento causado pela descoberta recente deixara exausta uma mente que há tanto tempo vivia com o apenas suficiente, o meramente satisfatório e o medíocre.
Não notou a passagem do tempo até dar-se conta de que o céu era agora o vasto campo laranja que ele vira tantas vezes de sua janela a marcar o fim da tarde, prenúncio de uma noite que antecederia uma nova manhã na qual nada mudaria. E não tivesse a forma ao longe se movido, ele teria talvez reagido àquele fim de tarde com a mesma indiferença com que recebera tantos outros. Mas o momento cheio de possibilidades lhe escapava por entre os dedos e, reunindo suas forças, ele deu início a seu futuro.
Quando se aproximou eles estavam com os rostos sob o rio, decerto deleitando-se em sua refrescância depois de horas banhando-se no calor do sol. Ele sentou à margem, convencendo-se de que qualquer gesto seu que apressasse o momento o tornaria imperfeito, forçando-se a não pensar no quanto de sua hesitação era medo. E a água moveu-se e dois rostos olharam para ele, e ele viu seu medo refletido nos olhos deles.
No turbilhão de receios e esperanças e revoltas que o envolvera desde aquela manhã, não havia estado presente a reflexão sobre qual seria a reação de pessoas como ele ao voltar de um mergulho sob a água e deparar-se com alguém que respirava ar.
Observaram-se, ele chocado demais para fazer qualquer gesto, até perceber que sua imobilidade e silêncio certamente o faziam mais assustador aos olhos do casal. Nascia-lhe no peito uma torrente de palavras sobre sua história e sua infância e o dia em que pensou que ia morrer quando tinha treze anos e o momento em que percebeu que vivia e o medo que o tomou quando percebeu o porquê vivia e a colega da escola e como ela sorria e as poucas roupas que havia em sua mala quando saiu de casa e como nunca teve coragem de perguntar aos pais se eles desconfiavam do motivo que o levou a ir tão longe e como ele já sabia a resposta devido ao fato de que nunca mais o contataram e como um dia houve uma moça de tranças e sorriso lindo, que não suportava que ele empenasse o chão. Sem ser capaz de dizer nada disso, pôs os pés na água e mergulhou no rio.
Sentiu as lágrimas lhe cobrirem o rosto, a sensação familiar de água quente lavada por água fria e subiu à superfície onde se encontrava seu destino. Quando emergiu, havia duas mãos estendidas para ele, e a sensação de tomá-las sentindo a areia entre seus dedos e a água secando sob o vento fino que soprava era uma carícia diferente de tudo o que já havia provado e que imediatamente o fez sentir-se em casa. Quando emergiu, não precisaram trocar palavras para que soubessem que passariam a noite em um abraço sobre a grama e a manhã seguinte em rodopios sob a água, ele agora um participante da dança da qual mais cedo fora espectador. Quando emergiu, ele sabia que passariam muitos dias correndo pelos bosques e nadando pelo riacho e fartando-se no aroma das flores da margem que impregnariam seus cabelos e apreciando a carícia áspera da terra em contato com um corpo molhado. Sabia que passaria os próximos dias cortando madeira para ampliar a esteira na qual dormia em seu quarto e que, quando ao fim do trabalho, voltasse refrescado do rio, banharia seus corpos com a água que escorria de suas mãos, e nenhum deles se negaria a beijá-lo. A água empenaria o chão do quarto e contaria a história de seus dias, cada curva e cada inchaço marcando aqueles momentos para que não se perdessem no tempo. E talvez em algum futuro distante um viajante, procurando por um lar isolado junto a um riacho, onde pudesse mergulhar longe dos olhos alheios, descobrisse aquele chão e aquele quarto, e não se sentisse tão sozinho.