Escrevendo Euranía

Esse é um conto antigo. Não porque ele foi originalmente publicado em 2014, numa coletânea da extinta editora Buriti, mas porque ele é parte do primeiro universo que criei na minha vida: Euranía esteve comigo pelos últimos vinte e alguns anos.

Eu me lembro vividamente de andar com um caderno com capa da Minnie pela casa. Me achava toda importante porque ele era de capa dura. Foi nele que escrevi as primeiras histórias de Euranía, essa terra mágica em que duas irmãs gêmeas brigavam pelo trono. Nessa época, eu lia tudo de fantasia que chegava nas minhas mãos – livros ilustrados, não ilustrados, contos, revistinhas. Mas meu coração tinha um lugar especial para Willow: Na Terra da Magia, um filme que assisti com minha irmã trocentas vezes. O que mais me encantava nem era a história em si, mas a ambientação. Tudo naquele filme convencia: o herói inesperado, a transformação de um homem e de uma mulher ao entrar em contato com uma causa, o bebê da profecia e a vilã. Como eu adorava aquela vilã! Naquela terra tudo fazia sentido. Eu sentia que estava lá. Tudo que eu queria era um dia escrever uma história que convencesse as pessoas assim.

No alto dos meus nove anos de idade, eu me dedicava seriamente a Euranía. Escrevi uma primeira versão da história, mas achei muito curta. Só quinze páginas da minha letra garranchada que pulava uma linha. As pessoas iam ler rápido demais e não ia ter a menor graça. Então resolvi que ia esperar ficar mais velha e reescrever – aí eu teria a letra menor, não ia pular linhas e escreveria mais sem cansar. Mas eu tinha anotado o nome de todos os personagens e suas características. Tentei fazer um mapa uma vez, mas desisti porque, né, esse talento eu nunca tive.

No meio do caminho de Euranía não tinha uma pedra, mas Harry Potter. Com dez anos eu li e reli “A Pedra Filosofal” umas sete vezes. Meus pais ficaram seriamente preocupados com essa minha fase, inclusive (mal sabiam eles que isso ia durar quase uma década). Assim como Willow antes, eu achava que Harry Potter tinha uma ambientação maravilhosa: eu estava em Hogwarts o tempo todo com Harry! Isso me empolgou a voltar a escrever sobre Euranía, e decidi que eu já estava grandinha, então abandonei a escrita à mão e fui escrever no computador. Olha só que moderna.

Mas aí a adolescência veio e com ela as fanfics de Harry Potter. O caderno da Minnie foi esquecido e os antigos arquivos do Word não eram mais abertos. Euranía ficou na gaveta e no fundo da minha cabeça, junto com todas as histórias inventadas da infância.

Dizem que a gente nunca esquece as coisas, que elas só estão ali latentes, esperando algum gatilho para despertar. E foi mais ou menos assim. Em 2014, eu era uma escritora com meu primeiro conto publicado, e decidi me inscrever pra coletânea Boy’s Love – histórias de amor sem preconceito, da editora Draco. O conto era sobre dois amigos, estudantes de um templo de alquimia, que se apaixonavam e se reencontravam anos depois. Lembro que estava no meio do conto quando parei de escrever de repente. Eu tinha a sensação clara de aquela história se passava em Euranía!

Aquilo me deixou um pouco perplexa. Fazia uma década que eu não pensava em Brucei, Grinda e o rei Talan, e de repente lá estavam Malerk e Lorremim estudando no Templo de Kian, que, ora ora, era o mesmo templo no qual a princesa Brucei havia se formado. Mesmo depois de todos aqueles anos, Euranía estava bem viva na minha cabeça.

Alguns meses depois, escrevi “O Último Verão de Euranía” a partir de alguns rascunhos velhos. Não é que a pequena Melissa já tinha a mania de anotar tudo dos personagens? A coletânea nunca foi divulgada e depois a editora acabou. O conto ficou no limbo até que em pleno ano do caos 2019 decidi voltar a ele e publicá-lo na Trasgo.

A edição do Rodrigo vam Kampen trouxe algumas considerações interessantes para esse mundo. Uma delas foi retratar Brucei e Grinda como negras. Me empolguei muito com a ideia, mas a única coisa que pedi foi que o cabelo delas continuasse amarelo. Eu não costumo descrever fisicamente personagens e tenho uma péssima imagem visual deles, mas por algum motivo o cabelo amarelo de Brucei e Grinda, adornado com óleo de ouro, sempre ficou. Acho que é de novo aquela fascinação da ambientação: o cabelo untado, brilhando no sol, fazia com que tudo para mim ficasse convincente. Como se as mulheres da realeza de Euranía todas aparecessem ali para mim andando pela varanda do castelo.

Foi muito interessante ver, pela primeira vez, uma história de Euranía analisada por olhos experientes de editor, e sinto que a Trasgo é o lugar ideal para que esse mundo fique registrado. Em algum lugar por aí, a pequena Melissa está sorrindo, empolgada, porque parte de seu mundo virou realidade. E não num caderno de capa dura da Minnie, não. Algo muito mais chique: em e-book digital e em um zine que vai para bibliotecas. Nada mal.

Author: Melissa de Sá

Melissa de Sá publica fantasia e ficção científica desde 2012. É autora de "Metrópole: Despertar" (2016) e "Metrópole: Caos" (2018), uma distopia publicada em dois volumes pela Editora Draco. Trabalhou também no projeto "A Última Tourada", um livro infantil online com multimídia que obteve centenas de milhares de downloads no site oficial. Publicou contos em formato e-book – por editoras e de forma independente – disponibilizados na Amazon. Dentre os mais destacados, estão "Noites negras de Natal e outras histórias" (em parceria com Karen Alvares), "Noite de caça" e "A torre e o dragão". Participou de oito antologias de contos, dentre elas "Excalibur: histórias de reis, magos e távolas redondas" (Draco – 2013), "Magos: histórias de feiticeiros e mestres do oculto" (Draco – 2017) e a "Trasgo Ano 1" (2017). É aluna de doutorado em Literaturas de língua inglesa pela UFMG, mestre na área pela mesma instituição e leciona inglês e suas literaturas no IFMG. Durante quatro anos manteve o portal livrosdefantasia.com.br, com resenhas e artigos do gênero. Pesquisa distopias escritas por mulheres desde 2010 e dedica a vida ao estudo, produção e divulgação da literatura especulativa. natural de Belo Horizonte, mora em Conselheiro Lafaiete, interior de Minas Gerais, com o companheiro e dois cachorros.

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