Histórias esquisitas

Sempre gostei de histórias esquisitas. Dessas que começam familiar, mas rapidamente se transformam em algo completamente diferente do que esperávamos. “O musgo da língua” é uma tentativa disso. A ideia embrionária do conto surgiu, na verdade, de um site de prompts de histórias. Ele gerou uma ideia que nem lembro direito qual era, algo vago sobre uma princesa, mas saiu a palavra “musgo” junto, e minha mente teve um estalo. Li “This world is full of monsters”, de Jeff VanderMeer, uns anos atrás e foi uma história completamente diferente de tudo que eu já tinha lido até então. Nela, há essa criatura-história tomando conta de tudo (e da própria narrativa), e foi algo que ficou na minha cabeça por muito tempo. Ainda está, na verdade, e pra mim essa é a maior característica de uma boa história: aquelas que você ainda consegue lembrar da sensação que teve ao lê-las pela primeira vez. Não é uma questão de lembrar da história, veja bem, mas de senti-la para além da memória dos eventos narrativos.

Eu gosto da ideia de que "O musgo da língua" poderia se passar em qualquer lugar do Brasil. Por isso mesmo, por poder se passar em qualquer lugar, eu decidi que se passaria no Recife. Esse fato não faz muita diferença para a história, e nem deveria, mas localizá-la geograficamente na minha cida de natal é também localizar os leitores e perder o medo de regionalizar o texto. Esse é um problema que talvez possa não existir para alguns escritores, mas para muitos que moram e exercem sua escrita fora de grandes polos, pode ser intimidador identificar sua região.

Quando comecei a escrever, queria experimentar com sensações. É por isso que não importa muito de onde Tuane veio, ou como ela chegou no hospital, nem nada do tipo. O que eu queria passar era o ambiente, as texturas e os visuais contrastantes entre o cotidiano banal (uma sala sem janelas, pasteurizada, de luzes fluorescentes e sem decoração) com uma explosão de vida (o musgo crescendo dentro das duas personagens, o chão irregular, a neblina, o sangue). A natureza não é bonitinha aqui, pois ela não é bonitinha fora de nossas casas e parques urbanos. Liberdade, em natureza, não é algo agradável de olhar. Natureza é visceral.

Na história, Tuane é uma visitante. Ela pode ser de outro planeta, de outro universo, de outra Terra — de onde quer que você queira que ela seja —, mas mesmo em seu estrangeirismo, ela e França (e quem sabe quantos mais) compartilham esse elemento especial que é o musgo. Quem pensa em musgo, não é mesmo? Mas musgo é exatamente essa habilidade que vemos na natureza de existir em todas as formas possíveis.

Experimentar com essa gama de sensações e imagens, juntamente com essa perspectiva de natureza penetrando um ambiente pasteurizado, foram o norte dessa história. Eu demoro a escrever, e ultimamente tenho escrito muito "sob encomenda", mas essa história não foi nem demorada e nem sob encomenda. Ela me veio de forma muito orgânica, o que é bem raro pra mim, e não pude deixá-la passar. Escrevi em uma noite e revisei pelas semanas seguintes, até chegar num formato e com o tom que eu estava buscando. Sendo um conto bem curto e, bem, esquisito, nem tinha muita ambição de que fosse publicado ― parecia-me muito pessoal e introvertida para isso. Foi uma felicidade e uma surpresa imensa receber o aceite da Revista Trasgo para ela, pois eu estava pronta para jogá-la no mundo de forma independente ou, mais provável ainda, engavetá-la por tempo indeterminado.

A princípio, o conto se chamava "O musgo da língua, a neblina do dia". Contudo, o dia se transformou em madrugada e o musgo tomou conta até mesmo do título.

Author: Iana

Iana é tradutora-intérprete (EN-PT), natural do Recife, e atualmente mora com uma irmã, quatro gatos e uns quinhentos livros em sua cidade natal. Formada em História, já fez de tudo um pouco, de pesquisas de campo à mediação de leitura e docência em sala de aula. Acabou que não teve jeito: sua paixão pela leitura e pela escrita a levaram a lecionar Inglês. Daí, foi um pulo para a interpretação simultânea, a tradução e, posteriormente, à revisão e preparação de textos para autoras independentes e pequenas e médias editoras. Entre uma função e outra, ela escreve (geralmente de madrugada) e resgata gatos de rua (em todos os horários). É editora na Revista Pretérita, voltada para a ficção histórica brasileira, e na Eita! Magazine, zine em inglês que traduz e publica FFC brasileira "pra gringo ler".

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